É o mistério profundo, é o queira ou não queira, foram águas de março

É engraçado. Sempre que paro pra abastecer tocam as melhores músicas no rádio. Naquela sexta-feira não foi diferente. O cheiro de gasolina não incomoda, ele me lembra a estrada e tudo que ela tem a oferecer, mesmo armada de muitos CDs, a distração por fora das janelas é simples e dá o tom da viagem. Música também ajuda e a que tocava no posto era "wave".

Tudo pronto, a viagem seria longa. Algumas horas num carro são suficientes pra dar a volta no mundo em pensamentos, olhar, ouvir, perceber, até alguma coisa te prender a atenção, principalmente se trouxer nostalgia. Lembrei quando era criança e viajava me perguntando coisas que não têm respostas, e uma delas, ali, eu me dispus a entender: o mistério das borboletas amarelas suicidas de beira de estrada. Em pouco tempo eu já tinha visto duas se jogando nos carros que passavam na contra-mão.

Fiquei atenta. Quando a primeira criatura que tentou me usar como instrumento de seu fim apareceu, eu acelerei a abri a janela do passageiro ao mesmo tempo detonando todos os cálculos que ela tinha feito, e vupt! Consegui capturá-la. A borboleta amarela suicida de beira de estrada começou a se debater loucamente que eu tive que parar o carro. Tentou se sufocar debaixo do tapete, não conseguiu, tentou se enforcar com as fitas do senhor do bom fim mas eram grossas demais, quando tentou se intrometer nas saídas do ar-condicionado eu já não aguentava mais e segurei-a com a mão.

-Ainda bem que você se comoveu com meu desespero e vai me ajudar, me esmague! Ande! acabe logo com isso! Eu não consegui me conter, e desastrei a rir. -E qual é o motivo da graça? A borboleta amarela suicida de beira de estrada parou de se contorcer e eu percebi que ela ficou seriamente chateada com a minha risada.

-Me desculpe, sente-se aqui. Coloquei o bichinho no topo do volante e me aproximei. -Eu sempre quis saber, me diga qual é o problema com todas as borboletas amarelas suicidas de beira de estrada?
-O que vem a ser um problema?
-Bom, é uma situação difícil que deve ser resolvida.
-Resolvida. Eu estava tentando resolver e você me atrapalhou!
-Na minha terra, suicidas não vão pro céu.
-Se as borboletas vêm do céu, sugestões?
-Depende, por isso perguntei qual era o caso.

A borboleta amarela suicida de beira de estrada tentou dizer, mas era mais confuso do que eu imaginava.
-Olhe, tentando resumir, nós borboletas, somos movidas à emoção. Esse é nosso princípio básico.
-Engraçado, eu pensava que o homem se diferenciava dos demais animais por causa disso.
-Isso é mania de grandeza. Enfim, e como na natureza nada se perde tudo se transforma, quando não atingimos o auge dos sentimentos estes se transformam em sensações ruins, ficamos amarelas de angústia e assim não conseguimos viver. Foi então que eu procurei a associação das borboletas pra saber o melhor método de acabar com a angústia, e elas me disseram que o mais utilizado era o de ficar escondida em plantas e se jogar quando um carro passasse. Foi então que você apareceu e atrapalhou tudo.

-Certo. Mas, me conte como isso aconteceu.
-Bom, eu vi seu carro chegando e pensei tem que ser agora...
-Não, essa parte eu sei. Eu me refiro a você ter ficado dessa cor.
-Ah. Tudo começou quando espalharam aquela história, "cuide de seu jardim pra que elas venham", até ai nada contra, mas a parte de "não segure-as, deixe-as livres que elas voltarão, e se não voltarem é porque nunca te pertenceram" foi o que deu errado.
-errado?
-O caso é que as borboletas são a liberdade, ser livre é não ter noção de tempo, e o tempo que nos falta pra perceber é o tempo que não podemos perder...
-tempo pode fazer um jardim secar.
-Justamente, Tom Jobim bem que disse.

Foi só um tapa, o mais doloroso que eu dei. Peguei o contorno e a idéia psicologicamente comprovada que eu tinha de que a ida era mais longa que a volta se desfez.