De plástico mesmo.

A luz do corredor tava apagada pra não atrapalhar a iluminação do palco. As meninas da próxima dança já tinham entrado, mas sempre ficam algumas pessoas querendo assistir por um canto da cochia, e acabam atrapalhando quem quer passar pro camarim e trocar de fantasia. Naquele dia não foi diferente. Sussurrando vários "com licença", consegui desviar e chegar um pouco menos suada do que depois de dançar.

Como nos outros anos, sempre é bom levar uma pessoa pra te ajudar a trocar de roupa. Já que a maioria está ocupada fazendo o mesmo. É facil pela maquiagem e cabelo serem os mesmos, e a meia calça rosa estar por baixo, poucos minutos e só faltava a parte mais importante: a troca de sapatilhas.

Na mochila, separada, bem cuidada. A sapatilha rosa tinha sido pintada um dia antes pra pegar o tom certo. Tinha que estar tudo certo, tinha que sair tudo certo. Ùltimo festival, última dança da noite e o meu primeiro "Lago do cisne". Eu, logicamente, era uma daqueles cisnes que preenchem o palco por pouco tempo de dança. (Como eu queria encaixar o "ainda" nessa frase.)

Sentada no chão pra poder calçar melhor, eu aponto pra roupa colorida que tinha acabado de tirar, e peço pra minha mãe pegar a sapatilha dourada que estava ali no meio. Eu precisava tirar algo que tinha ficado nela: o coelhinho. Aquela proteção (individual) que se põe na pontas dos pés, pra que pelo menos diminua a quantidade de calos e a dor de quem fica de ponta. Sapatilha entregue, eu passo a mão por dentro. Nada. Levanto pra ver se tinha caido e ficado no meio da fantaisa colorida de indiana, puxo, sacudo, procuro e nada. Todas as sapatilhas ficavam na mesma sala, de cor igual, juntas de roupas iguais, e na pressa, ninguém pára pra olhar o nome riscado no fundo. Alguém pegou trocado.

Tento falar alto e perguntar se alguém tinha visto. Sapatilha sem coelhinho não dá pra ficar um tempo sequer na ponta dos pés. A música já quase no final, a dona da academia passa no camarim pra saber se está tudo "ok". Era quase a hora, a melhor dança do festival, que homenageava os 15 anos, tinha que começar. Vou até a porta e falo o que aconteceu e que não tinha condições de entrar sem os dois coelhinhos. O Medo, sem saber qual seria a reação da manda-chuva, só sabendo que ela sempre foi muito rigorosa, ficou no segundo lugar quando o mais difícil foi dizer pra mim mesma que, no meu último festival eu não ia dançar o meu primeiro clássico do ballet clássico.

Ela olha pra mim simplesmente revoltada e diz "ah, você vai dançar sim, vai dançar!". Eu repetia que não tinha condições e ela não dizia outra coisa, a preocupação era exclusiva com o espetáculo que o nome dela carregava. A partir dai eu já estava chorando e meia dúzia de meninas parou pra ver o que acontecia, ela olha pro chão como quem procura uma agulha, e ao achar me entrega dois pedaços de plástico depois sai pra cuidar de outros detalhes.

Dois pedaços de plastico na mão, pra pôr no pé. Sem condições. A dor seria insuportável e eu sairia do palco no meio da dança. Enquanto meu coração palpitava a mil, mais um minuto já tinha passado, eu enrolei o plástico no meu pé, chorando. A cisne pricipal que tinha de estar pronta muito antes que a gente tava saindo quando parou perto de mim. Me joga dois coelhinhos novos, que por sinal ela tinha comprado só pra aquele festival, e diz que era pra eu usar. "Mas você é a pricipal, como que pode?" eu indaguei sem entender, e ela me diz: "eu tinha outros dois na bolsa, os antigos são melhores, meus pés estão mais acostumados que o seu, pode usar, você precisa mais do que eu". Várias pessoas apressadas gritam o nome dela e sorrindo ela acena e sai.

Na roupa, penas brancas de cisne, mas no meu ver eram penas de anjo. Coelinho novo, benção de quem era principal. Minhas colegas me reanimavam com pressa e diziam pra enxugar as lágrimas. Era nossa hora de entrar. Na cochia, três coisas: a música me consumindo, a humildade me impressionando e o egoísmo plastificado.

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