Deve ser o frio.

Antes de chegar em casa eu passei no ponto de ônibus do outro lado da rua. Tinha lá escrito na tabela de horários que na madrugada o ônibus iria passar às 1: 25, 1:45, 2:25, 2:45 e assim até as seis, quando ele volta a passar a cada dez minutos. Cheguei e, antes de tomar meu café, subi pra tirar os casacos pesados e colocar os casacos mais leves. Isso porque o aquecedor da casa deixa o ambiente viável de raciocínio e conforto, não deixa a casa quente, de forma alguma. Deixa menos frio do que lá fora. Por sinal o que tenho para contar agora é o frio que passei.

Meu celular, de uma queda que tomou não tocava e nem vibrava mais. Acordar sem despertador seria algo impossível, a não sei que eu ficasse acordada fazendo algo que me segurasse até as duas da manhã. Perguntei a Sandra se ela não tinha qualquer aparelho celular velho, que não fosse usar, pra que eu pudesse fazer de despertador. Ela me deu um, e como tava tudo em espanhol, quis deixar no ponto, me perguntou que horário eu queria que colocasse e eu disse que uma e meia da manhã estava bom. Porque tão cedo, ela perguntou, eu disse que queria ir pro aeroporto bem cedo pra não correr o risco de perder o vôo, de novo.

Eu iria viajar pra Itália. Digo iria porque não viajei, mas isso é história pra outro texto, não esse. Acordei, e a malinha já estava pronta, tinha separado tudo que precisava de forma bem compacta, pra não correr o risco de não poder embarcar por causa da mala, de novo. Fui pro frio infernal e fiquei no ponto de ônibus, eu, Deus e o frio. Pra quem não sabe, e quem acredita, claro, se existe um inferno ele é gelado e não quente como em alguns lugares é dito.

Sentada, sozinha, de madrugada, num ponto de ônibus, uma cena inimaginável se fosse no lugar onde eu moro. Passava alguns carros, uns táxis chegavam a passar devagar me olhando com estranheza, e algumas pessoas andando. Cheguei a sentir medo, pois isso me foi ensinado. Ficar atenta, saber o quanto o mundo é perigoso, o quanto somos vulneráveis a tudo de horrível que pode nos acontecer quando se está fora de casa, conversas de mãe. Mas ali, nada aconteceria. Não havia mendigos ou marginais, as pessoas andando eram jovens, velhos, homens, mulheres, tranquilamente indo ou voltando. IDH de padrão elevado, povo civilizado, serviços públicos impecáveis, organização, pontualidade, seriedade e compromisso. Muito fino o povo inglês.

Cheguei no ponto 1:40, aprendi com o povo de lá a seguir horários, eles nunca falham. Mas quando era 1:45 o ônibus não tinha chegado, e eu achei muito estranho. 1:46, 1:47, 1:48. Nada. Um atraso de três minutos era muito, muito estranho. Fui conferir na tabela de horários. Era madrugada de sexta-feira, eu tinha olhado na parte de Fri/Sat/Sun, e olhei errado, pois havia um horário de "madrugada de quinta pra sexta". Ele só viria 2:50. Entendi a estranheza das pessoas quando me viam no ponto. Pensei em andar, mas a malinha nas costas, não iria ajudar com aquele peso. Pensei em voltar pra casa, mas desisti. O trabalho que daria me desembrulhar toda, o barulho que faria no meu quarto que é do lado do quarto do bebê, a preguiça de ter que sair no frio de novo, eu preferi que ficar lá, achei que iria aguentar.

Com 25 minutos sentada eu não sentia minha mão. Lembrei de minha mãe perguntando se a luva não aquecia e pensei, é o mesmo que pegar a luva e colocar no freezer, depois você vê que a lã também fica gelada, o couro o algodão, qualquer coisa. Depois de dormência o que eu sentia era dor. Dor de frio. Meus movimentos estavam petrificados e eu só sabia que mexia os dedos do pé se olhasse a bota mexer. Fora meus músculos tremendo de maneira desesperadora, incontrolável. Tentei a tática de que frio é psicológico e me fui me concentrar em alguma coisa. Reza, música, expectativa com a Itália, qualquer coisa que eu tentasse nada adiantava e toda vez que eu olhava no relógio parecia que até o tempo tinha congelado.

Quando o ônibus chegou eu já fazia cara de choro, não deu nem pra sentir o alívio que é encerrar uma espera. Quando fui tentar andar quase não consegui, parecia uma paraplégica em reabilitação, entrei, sentei e nem ouvi o que o motorista balbuciou. Fiquei de mal educada sem responder. O caminho até o Picadilly Gardens era pequeno, talvez eu passasse em torno de sete minutos ali, sem trânsito. Mas sete minutos foi o tempo suficiente pra assistir uma das cenas mais memoráveis que já vi. Mas não era memorável no bom sentido.

O motorista parou no sinal vermelho, mesmo sem carros nem pedestres, ele estava parado no sinal vermelho, afinal, regras são regras, e não há perigo de ficar com o carro parado no meio da rua tão tarde. Nesse sinal vermelho, um velho com uma malinha na mão, bateu na porta do ônibus. O motorista apontou para o lado de fora como quem diz "o ponto de ônibus é ali". Eu observando aquilo sem entender li uma placa perto da porta que dizia "para a nossa segurança, motorista, pare apenas nos pontos de ônibus". Segurança. No frio de dois graus celsius, um velho, uma malinha, nenhum trânsito e com o ônibus parado. Não existe acordo.

Quando o sinal abriu o ônibus seguiu o caminho. Obviamente, pela distância que estava do ponto, e pela velocidade do velho, ele não iria chegar antes nem na mesma hora que o ônibus. Eu pensei que, se a regra é só abrir as portas apenas no ponto, o motorista fosse parar e esperar o velho chegar, no ponto. Mas se ele fizesse isso, ele não iria passar no ponto das 2:54 às 2:54, e isso seria um atraso, estava tudo calculado, mesmo sem trânsito, sem pedestres, mesmo a chance do ponto das 2:54 estar vazio, são regras. O ônibus passou do ponto e o motorista seguiu sua rota, ouvindo a música dele, com o trabalho cumprido, britanicamente.

Eu não sei pra onde o velho queria ir, não sabia se no ponto que ele ficou passaria outro ônibus ou se aquele era o último, não sabia quais as consequências que ele teria com aquele atraso, não sabia se ele ficaria triste ou se puniria por não ter chegado no ponto no tempo certo. Lembrei dos ônibus brasileiros, velhos, lotados, atrasados, parando onde fica melhor pra todo mundo, pra subir ou saltar, no calor danado, vencendo as ladeiras e os buracos. Pensei que nada no Brasil vai funcionar um dia como funciona na Inglaterra. Antes eu justificava com questões históricas, culturais, mas hoje eu sei que é uma também é uma questão de temperatura.




Comentários

Stefan Rotenberg disse…
De longe, e por pequenas frestas.

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