A personalidade das cores
Eu voltei. Eu estava de férias,
mas agora que a faculdade está de greve, eu voltei. Tive medo um dia, achando
que tinha me perdido, me trocado. Mas me conforto hoje porque sei que é uma
questão de tempo livre. Arrumando meu quarto achei minha caixa de tintas, o
quadro redondo estava encostado na parede, pela metade. Me olha todos os dias, mas hoje eu não tenho mais
desculpas pra deixá-lo pela metade. Ainda mais que esse ano, fecho um ciclo de
quatro anos desde que o comecei, muita coisa se resolvendo, se esclarecendo, e o que é passado se
configura como passado. O quadro é passado, mas incompleto. Deixa a lacuna do
que estar por vir, não é algo terminado, é algo em aberto, como a vida de toda
gente. Uma parte escrita uma parte aberta, por vir. Mas hoje eu iria dar continuidade.
Arrumei o espaço na varanda,
chovia e havia pouca luz, o clima perfeito pra criações, pelo menos é assim nos
filmes. Todos em casa, enjoados de não fazer nada. Recrutei meu time, abri a
latinha e, de uma por uma, fui vendo a disposição de cada cor. 48 meses de validade e
compradas em 2008, elas estavam prestes a se aposentar. Então,
aqui começa minha saga em descrever a personalidade das cores. É engraçado, pois, foram compradas na
mesma época, sendo das mesmas marcas, e mesmo assim as diferenças de comportamentos eram
observáveis até pelo meu pai, que estava lendo jornal ali do lado.
"Tem umas que não querem nem sair do tubo, né?", disse ele.
Algumas estavam preservadíssimas, dispostas, saíam
para o pedaço de papelão como quem desfila. Brilhando, com tortuosidades, uma
textura que dá vontade de colocar a mão. A líder desse grupo da boa vontade era
o Amarelo Limão. Que cor abençoada. Aquele tipo de cor que é vibrante, mas não
pela força, mas pela intensidade, entendam a diferença. É aquele seu amigo
alegre, que a depender da ocasião pode se expressar demais, ser extravagante e
exagerado, mas quando ausente, deixa tudo com o clima desequilibrado, de que está
faltando algo. Diferente do Amarelo de Cádmio escuro. Desde que eu comprei ele
era grosseiro, grosseiro mesmo, em tom e textura. É marcante, confesso, mas
birrento, fica bem quando é sozinho ou destaque, não consegue confluir com uma
cor que consiga competir bem. Uso bem pouco, não gosto de dar moral.
Foi interessante que, no time das
moças, todas estavam animadas.
Eram elas: o Amarelo Nápoles Carne (que é mais salmão do que amarelo, eu não
entendo o nome), Rosa Escuro (que tem a mesma pegada do Cádmio) o Laca Orquídea
(que é bem fofinha e sem sal, não recusa nada) e o trio mais puxado para o vermelho e mais empolgado: Magenta, Laca
Gerânio e Carmin de Alizarina. O Violeta Cobalto, que antes andava com as
meninas, dessa vez revelou seu lado masculino e não cedeu, contribuiu com a
revolta dos azuis, que vou reportar mais adiante, e por sinal, me deixou magoadíssima.
O Magenta, pelo nome se deduz
algumas coisas. É famosinha, tanto que não tem sobrenome. Ela se destaca bem,
se acha, pois a Risquè já gosta de lançar gente da família, é firme e consegue
se engraçar abrindo um tom de rosa mas sem mostrar a sutileza e infantilidade
dessa cor. É disposta, convive bem nas misturas porque sabe que não é
suprimida, divide espaço sim, mas tem força suficiente para se segurar e não
perder o olhar de quem observa (nem que segure pela visão periférica). Gerânio e
Carmin são aquelas duas amigas bonitas que só andam juntas na balada. Olhando
pela embalagem até que são diferentes, bonitas e diferentes. Na tela, Carmin
ainda consegue ser mais densa, pesada, mas isso quando esta concentrada, porque
qualquer manobra que a espalhe consegue desmontá-la e ela vira tão
"vermelho aberto" quanto Gerânio. E Laca Gerânio tinha tudo pra ser
"a cor do quadro". Tem uma presença grande, sabe usar a vantagem de
ser um vermelho, e isso é muita responsabilidade.
Bom, o que eu acho curioso desses
vermelhos é que todos me fazem recordar as mulheres do mundo, que no fundo,
todas elas ou são ou querem ser como uma cor vermelha. Captar atenção, provocar
pensamentos fortes nos outros e mostrar firmeza em si. E elas conseguem ser
assim. Mas, em algumas situações de provocação, podem descer do salto, chorar,
se diluírem, e vão começar a abrir o tom e mostrar no fundo branco aquele
rosinha que toda mulher vermelha tem dentro de si. Um rosinha acanhado, com
resquício da responsabilidade, do tipo que tem o olhos marejados mas não quer
ser vista como fraca. É esse rosinha que aparece quando um pincel trata um cor
vermelha com agressividade e rispidez. Revela-se então, aquele rosa sutil e
frágil, quiçá infantil, que sempre ficou guardado para se revelar em horas sensíveis.
E sobre isso vou contar um segredo. O rosa não só aparece em horas de mágoa. Quem
souber abrir esse vermelho com respeito e intimidade consegue ver um rosinha
mais corado e firme, mais cheio de si por se sentir valorizado.
Enfim.
A despeito da fofura do
time das meninas que muito contribuiu, a revolta dos azuis me tirou do sério,
tanto que eles provocaram a minha desistência de continuar o quadro naquela
tarde. É claro que meus materiais também não me ajudaram, e estavam até
tentando, coitados, mas é como você pedir aquele seu tio velhinho te ajudar a
carregar algo pesado. Hoje de tarde não deu mesmo. Até o branco, que é meu fiel
escudeiro, a cor que mais uso e não vivo sem, hoje, não conseguiu me ajudar.
Vou entrar numa das partes que eu mais gosto que é explicar o porque da
importância colossal da tinta branca, já que "se o quadro já é branco,
para que usar tinta branca? Tem que usar as outras cores".
Porque, e todos já sabem disso, o
branco é todas as cores. Ele é tipo um oráculo, um conhecedor de todos os
assuntos, ele tem experiência em todos os tons, tem paciência de um ancião de
cabelos bem brancos, e é a sensatez em tinta. Aquele que senta do lado de
alguém estressado e consegue tirar informações reprimidas, baixar a guarda dos
agressivos, desmontar os egoístas, enfim, promover a paz. Não tem cor certa que
o desobedeça, até o preto vira um cinza sem voz. Tenho inveja, aprendo muito
com ele, é muita moral e muita humildade, pois, apesar de ter um controle
incrível sobre os outros e é tanta sabedoria que ao invés de se gabar mantém-se
como o mais discreto.
Mas os azuis, que decepção. Tudo
bem que eles se sentiam prejudicados, pois haviam dois azuis turquesa e dois azuis
hortênsia, ou seja, eles eram repetidos, os únicos repetidos da latinha. Devia
rolar bullying com eles. Mas, as duplas repetidas eram formadas por marcas diferentes, e por isso
havia diferença na hora de pintar, o problema era mesmo uma questão de nome, de identidade. Os outros dois azuis eram o Azul Real e o Azul Cobalto. O Real, consegue
ser mais meigo que o azul bebê. Seu trauma foi sua vontade não realizada de ser
o azul do vestido da Cinderela, e assim, como já viram, ele não fez parte da
revolução e mais contribuiu com as meninas, foi trocado pelo Violeta Cobalto,
que pelo sobrenome, é prima do líder desse golpe. O Azul Cobalto.
O fato de ser o mais gasto, fez
com que ele percebesse sua importância e a minha preferência por ele, não
dentre os azuis mas entre todas as tintas que eu tinha. Não tem como não se apaixonar, ele
é um senhor azul. Quando eu vi que os demais estavam endurecidos, sem querer
sair de jeito nenhum, eu até não me importei. Mas o Cobalto... Depois de tanta
moral que eu dei pra ele nesse quadro, me aprontar essa? Tava na cara que era
orgulho. Quando a pessoa sabe que é boa geralmente acontece isso. É aquele ator
global que ficou esquecido alguns anos e quando recebe um convite pra voltar
diz "agora você me quer? pois eu não vou mais". Eu não admiti aquilo,
lasquei o fundo dele, e tirei uma amostra na força. Foi pior do que colocar uma
criança para pedir desculpa pro irmão pequeno. Foi uma guerra tão grande, nós
dois medindo força, que eu encarei aquilo como uma questão de honra, e usei um
pincel pétreo, e misturei com branco e tentei botar água e fiz o que deu na
cabeça e tudo que eu consegui foi estragar o trecho do quadro que eu estava
pintando.
Eu pensei em me arrepender, pois,
realmente ficou feio. Destoante. Não adianta colocar alguém pra fazer algo que não quer
porque é certo de que vai sair mal feito. Foi o aprendizado do dia. Cheguei a ficar chateada, a
tentar consertar, mas na vida e no quadro tudo é assim mesmo, errou ta errado, pode
até tentar consertar aqui e ali, mas a marca vai ficar, as conseqüências
também. Não dá pra negar o que se fez, por isso é bom ir aos poucos já que, dando certo ou não, não importa o resultado, tudo vai ficar registrado. E não
adianta almejar sempre o perfeito porque nada na vida é assim. E no final,
quando você quiser concluir que a arte imita a vida, meu caro, eu tenho lá minhas
dúvidas se não é a vida que imita a arte.
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