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A visita

A visita

O Programa de Saúde Mental do Vale do Jiquiriçá vai acabar. Depois de oito anos prestando atendimento na cidade de Santa Inês, pela primeira vez estamos nos despedindo dos pacientes sem apresentá-los para novos estagiários. O sentimento de tristeza invade cada olhar quando damos tal notícia, mas todas as coisas da vida têm um fim e eu tive o privilégio de ter participado desse espaço de construção que mais modificou minha passagem pela faculdade de medicina. Não fizemos processo seletivo no último ano, e alguns estudantes já tiveram que sair por estarem muito perto de se formar e precisarem moldar novos planos futuros. De sete sobramos três.

Com menos estagiários, o volume de pacientes aumentou para cada um, e a consulta, infelizmente, ficou mais rápida. Eu consegui enfim atender treze pacientes numa manhã, no meio de despedidas e confecções de relatórios de alta. Meia hora antes do horário do transporte chegar, eu o vejo na recepção. É um rapaz jovem, rosto um pouco sério e sorriso tímido. Quando eu o vi já perguntei: "Como ela está? Estive pensando muito nela nesses dias”. Ele me faz uma expressão de tristeza conformada e responde: "Ela ta ruinzinha".

Não, ele não era paciente, ele era outro personagem muito importante na saúde mental: o cuidador. Ela, ela era a tia dele. 85 anos, e não tinha ido ao consultório por não conseguir mais andar. Com o programa sendo finalizado, não estávamos mais conseguindo fazer visitas domiciliares, um dos mais lindos pilares do programa, por uma questão de tempo e logística. Mas mesmo sem tempo, eu sabia que deveria ir. Vi que o transporte estava livre, sabia que a casa dela não ficava longe, então avisei aos colegas e fui mesmo assim. "Vai ter que ser rápido, mas é melhor do que não ir", pensei.

85 anos e menos que 30 quilos. Ela é a representação perfeita daquele paciente que a gente na medicina classifica como "caquético". Eu acho essa palavra tão forte e feia, mas ainda sim a prefiro já que o outro adjetivo também usado consegue ser pior: "consumido". Cabelos não totalmente brancos, davam o tom de acinzentado. A pele chegava a ser macia de tantas rugas. Ela ficava na mesma posição quase todas as vezes que eu a via. Como ela tinha pedras na vesícula biliar, sentia muita dor na barriga e ficava a maior parte do tempo numa posição que julgava sentir menos dor.

Fininha, sem forças, não andava e também mal se mexia. Por ficar sempre na mesma posição começou a fazer uma ferida que chamamos de úlcera de pressão. E essa úlcera também dói. A face dela já era de dor, dor mais que crônica, dor fixa. Quando eu chego, o sobrinho-cuidador a tira da posição de sempre e a deixa sentada. Do jeito que ela é colocada ela fica. Como uma boneca, só que velha, e ao invés de porcelana lisinha, muitas rugas. E até mesmo uma boneca de porcelana parece ser menos frágil do que ela se cair no chão.

Falo alto pra ela me ouvir, e vejo o tanto de esforço é feito pra conseguir nada mais do que abrir os olhos. Enquanto eu converso, o sobrinho dela a segura de lado, pelos ombros, para ela não cair de volta à sua posição antálgica. E ele arruma os cabelos dela, olhando de perto, como um menino num começo do namoro. Era muito amor naqueles olhos. Eu só não consigo dizer que eram olhos de amor exatamente iguais ao de Edward - mãos de tesoura, porque Edward colocou na expressão o elemento ‘surpresa’, os olhos dele na cena do filme olhavam a foto pela primeira vez. Se tinha uma coisa que não havia nos olhos do sobrinho, era surpresa. Ela estava ali todos os dias, do mesmo jeito, e mesmo assim ele a olhava com aqueles olhos de amor todos os dias, o que deixa o gesto mais bonito ainda. E como se não bastasse, o gesto acontecia mesmo com ela sem conseguir abrir os olhos para retribuir, ou seja, o mais bonito dos mais bonitos gestos.

A queixa anterior era de insônia, choro fácil, discurso estranho (como diriam os acompanhantes: "ela está falando coisa com coisa"). Mas o discurso era sobre ir embora, sobre pessoas queridas que já morreram, sobre céu, sobre passado. Ou seja, não é tão estranho assim se considerando todo esse contexto. "Por esses dias ela anda gritando muito". Gritando mesmo. Não era gritar de falar alto ou falar berrando. Ela grita a letra "A" mesmo, gastando todo o fôlego que ela quase não mais tem. Grita todos os dias, grita todas as horas, grita de meio-dia às dez.

Ela grita porque não se mexe, ela grita porque não levanta. Sem atividade motora, toda atividade dela é mental. Ela passa o dia imóvel, pensando. E o pensamento da gente, quando não está elaborando o futuro está analisando o passado. No caso dela, pensar no futuro seria contraproducente e monótono, a perspectiva era uma só, e é próxima, e é previsível. Outro parente encostou na porta do quarto com os braços cruzados e disse: "Ela passa o dia pensando em coisas que não tem mais jeito". Ou seja, contraproducente também.

Volta e meia ela mexe o dedo e aponta para um quadro da parede. É um desenho de uma casa. Ela era professora, bem sucedida para os padrões da região, muito querida (o que dava para perceber pelos olhos do sobrinho). A casa ficou em outra cidade, anos abandonada, e foi desgastada pelo tempo, roubada pelos outros e só sobrou o desenho. Quando ela grita, alguém pergunta o motivo, ela responde ser raiva. "Eu sinto uma agonia na cabeça e grito". E o grito alivia. Ou "alivia". Todo mundo ali sabia que qualquer comprimido que fosse receitado, ele seria uma gota de remédio num mar de sofrimento. É nessa hora que eu sinto dor no peito depois de perceber o tamanho da minha impotência. "De nada vai adiantar", pensei.

O motorista me avisou que o tempo que eu disse que iria demorar já tinha acabado. Me despedi dela. E no meio de tanta compaixão e silêncio, ela, que era dona do merecimento do meu mais nobre sentimento de pena, conseguiu me surpreender. "Você é Raísa, não é?". Foi o susto mais lindo que eu já tomei. Respondi que sim e peguei na mão dela. E ela apertou, e usou a força que quase não mais tinha, como quem quebra um porquinho de economias, e sorriu. Aquele sorriso banguelo, só restava o lateral direito, mas eu juro, eu juro que era lindo. E naquela hora eu concordei mais veementemente com Guimarães Rosa, quando ele belissimamente diz: "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso da loucura."


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