O valor crucial dos resultados invisíveis

Analisem a seguinte informação: O Brasil é o país que mais tem faculdades de medicina no mundo! O governo anda autorizando a abertura de escolas médicas, e claro, especialmente as particulares.Isso é bem condizente com um histórico infeliz, onde ao longo dos anos a Medicina veio deixando de ser Arte e/com ciência para virar uma prática comercial. O curso sempre foi elitista e desafiador e, antigamente, ser médico era visto como sinal de muito estudo e dedicação, uma profissão prestigiada por ser realmente muito difícil, delicada, poucos se arriscam a ter tamanha responsabilidade.

Mas consideremos o perfil do nosso país. Vamos combinar em se tratando de seriedade e responsabilidade, principalmente em si tratando de ações públicas, com repercussões populacionais, e principalmente envolvendo dinheiro, impunidade e esquemas, estamos longe demais de considerar a abertura de tantos cursos médicos como algo positivo. Saúde é um conceito que envolve uma série de determinantes e a ilusão de que se precisa de mais médicos pra ter mais saúde chega a ser leviana. A mídia, as clínicas, os laboratórios, os hospitais, estão cada vez menos preocupados em saber se as pessoas andam saudáveis, se sentindo bem. Pelo contrário, gente doente dá um lucro danado! A ideia é fazer o dinheiro movimentar: exames desnecessários, um médico especialista para cada pedaço do corpo e medicações mágicas vendidas como água, sem critério, sem consideração ética, e muito movimento financeiro.

Eu vejo as pessoas vivendo numa correria desenfreada, um caos moderno, onde as soluções devem ser rápidas e práticas, queremos menos filas, querendo não sentir dor, queremos remédios pra dormir rápido, uma ressonância pro corpo todo e check-up todo ano. É assim que a lógica sinaliza onde o negócio deve atuar, não existira essa abertura de cursos se não fosse toda essa cultura de desespero. O Vejo pessoas doentes, aborrotando leitos e lotando serviços de emergência para apagar o fogo emergente de um problema de saúde velho, levando seu corpo no desgaste máximo por pouco auto-cuidado. Bilhões sendo investidos em intervenções para corrigir situações evitáveis.

É aqui que eu explico o título do texto. Desde o curso médico eu não consigo lidar com a sensação de fingir que cuido, dando alta para alguém que eu sei que não vai melhorar, vendo situações que deveria ter sido cuidadas desde o início. Poderia pagar minha mensalidade, virar médica, abrir consultório, cobrar para prescrever e virar um robô, com condutas mecânicas, reproduzindo protocolos divulgados e patrocinados por empresas cheias de conflitos de interesse achando que estou fazendo medicina e ganhando muito dinheiro. Mas eu não consigo. Tenho o defeito de achar que médico de verdade não é o que tira a dor, é o que cuida de você para que você nem a sinta. A atenção "básica" é chamada básica porque é fundamental, é a base de todo sistema de saúde que preste.

Eu podia estar correndo nessa estrada competitiva de angariar clientes, fazer propaganda, oferecer serviço pra quem pode pagar, esperar que as pessoas adoeçam para me procurarem desesperadas, vulneráveis, com o bolso frouxo querendo "resolver" seu problema agudo dispostos a pagar. Enquanto a lógica segue esse rumo eu acredito em investir na base, em auto-cuidado, em prevenção, educação em saúde. A cada notícia sobre o governo atual eu vejo que o futuro é assustador. A pessoas estão perdidas, desesperadas, adoecidas, enfurnadas no trabalho, sustentando um sistema explorador, pagando os impostos mais caros do mundo e sendo iludidas com soluções falsas e mercantis.

Poderia ser desesperador pra mim também, romântica do jeito que sou e assistindo as coisas se afundarem. Mas eu também acredito que toda lógica de mercado segue os balanços da economia, o mercado satura, ocorre desvalorização, acaba o glamour e prestígio, aumenta a desconfiança, os profissionais pouco qualificados não se sustentam, mesmo sabendo que eles serão cobertos pelos esquemas e principalmente pela ignorância das pessoas, medicina é delicado e infelizmente eu prevejo a enxurrada de más práticas repercutindo de uma forma alarmante. Até chegar um ponto de ser exigido exame de ordem e então uma segunda seleção de quem realmente pode ter o aval de exercer a profissão, como aconteceu com Direito e a advocacia. O que resta é reforçar postura de procurar ser saudável em seu conceito amplo, selecionar bons profissionais pela postura e conduta ética e torcer, torcer muito, para sua saúde não virar mercadoria. Não condeno quem escolha atuar em esquema privado, esse texto é uma reflexão críticas para as práticas que passam do limite do respeito e chegam a ser atuações de má fé, se aproveitando de situações e pessoas fragilizadas. E eu não estou falando só de gente pobre não, vejo muita gente gastar rios de dinheiro a custa de ignorância.

Enquanto isso vou na luta contra-hegemônica de ter que explicar o porque eu continuo no caminho mais difícil. Enquanto as vitrines e status dessa era de pessoas expostas em rede sociais, existe Ainda  um caminho de luta por resultados invisíveis, sem chance de fazer fotos "antes e depois", onde a prioridade é ver pessoas saudáveis, e quanto menos exames melhor, quanto menor precisar internar melhor, quanto mais autonomia, conhecimento e condições para você puder cuidar de si melhor. E como seria possível evitar cair nessa lógica? Aprendendo sobre saúde e cuidado. Mesmo quando adoecer saber o que é melhor ser feito. E eu não digo aprender do jeito que a faculdade ensina, me refiro ao aprendizado que o seu bem-estar merece.

Comentários

Anônimo disse…
Artigo muito bom, parabéns! Achei de maneira meio que aleatória, deveria escrever/publicar algumas coisas no LinkedIn ou Medium são plataformas bacanas também e de maior alcance, você escreve muito bem e consegue dar um enredo bacana ao artigo.

Algumas ponderações:

1- Sobre sua luta: Muito admirável, falta gente no mundo com essa vontade e disposição, parabéns.

2- Sobre o 3º paragrafo: Infelizmente estamos acostumados sempre a tratar o efeito e não a causa dos problema, o que torna as coisas mais difíceis. Tem um vídeo bacana(link abaixo), que mostra um pouco dessa correria que se transformou a vida, caso já tenha assistido desconsidere.

https://vimeo.com/244405542?ref=fb-share

Ass: Douglas Gomes.

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