Dos filhos deste solo, és mãe gentil.

Não era tão cedo quando ele acordou. O Sol no seu rosto já ardia, mas não mais do que o mau cheiro que pressionava o meio dos olhos de dentro pra fora. O cheiro confirmava o que ele sabia que ia acontecer, se os "maloqueiros" passaram por aquela rua mais de três vezes, era certeza de mais uma vítima. Dormiu sem saber qual, rezando pra acordar. A escolha era aleatória, mas sempre os mais magros, consequentemente os mais novos. Banalizando da forma mais irônica possível, diria que o procedimento era simples; uma madrugada, uma pedra retirada da rua de paralelepípedo, um alvo dormindo e força, muita força. Um único golpe, na cabeça, como eles dormiam de lado era até mais fácil estourar de uma vez só.

O cheiro era de cadáver, e como se não bastasse aquela cena incrustada na memória, a vítima daquela noite foi seu irmão mais novo. Um a menos, sem registros, sem jornais. Não o perguntaram, mas ele não quis dar entrevistas. O que sobrou foram seus vinte anos, e sua fácil descrição; "era assim, um pouco alto e magro, era negro de roupas sujas, ai moço, não lembro direito". Sem dizer uma palavra o resto do dia, ele ficou pensando, por incrível que pareça, ele também pensa, também sente, também chora.

Um bicho. Um inseto que mesmo tendo seu tempo de vida curto, pode ter a morte antecipada por um tapa de alguém que se sentiu incomodado, que pode ser eliminado sem sequer fazer diferença, pois virão outros tantos iguais. "Você é um bicho, e não um homem". Mesmo que passasse dias tentando, não conseguiria descrever o que é não existir, o que é ser "o que" e não "quem", o que é ser invisível sem brincar de super-herói, o que é não ser ninguém.

Ele saiu armado, se teve tempo de pensar no que fazer foram algumas horas, sua munição; quatro balas; ódio, desistência da felicidade, saída e fome. Tinha a feição séria, o efeito da cola o deixava agitado, escolheu um ônibus qualquer, subiu, anunciou e só depois de um tempo veio o estalo. "Estamos dispostos à fazer negociações, se quiser fazer exigências, faremos o possível para que não machuque nenhum dos reféns." Fazer negócio? Exigir? Deu vontade de rir. Olha só, estão te filmando, plantão, ao vivo, rede nacional. Hoje, todos querem saber seu nome, sua personalidade e intenções, eles estão querendo que você fale, peça.

"Pode me mostrar, eu não vou me esconder. Quantas vezes vocês me viram? Se bati no vidro do carro, não viraram para o lado, não mexeram um dedo, não me viram, se um dia apareci na televisão, tinha uma tarja pra preservação de identidade. Identidade? Eu não tenho nome, mas hoje eu tenho voz. Tem voz quem tem poder, e poder no Brasil é ter a vida dos outros na mão, de um jeito ou de outro, roubando de gravata ou quase nu, a diferença é o final." Se o penhor dessa tal igualdade se consegue com braço forte, no seio dessa tal liberdade somos desafiados a morte.

Então ele fez as suas exigências. Sabíamos que não mataria ninguém mas atendemos sem tentar reagir. Não era nada abstrato; dignidade, justiça e paz, bem como um manifestante esquerdista sugeria. Ele pediu pra tomar banho ouvindo o liquidificador bater uma vitamina de banana e tomá-la no colo de uma mãe assistindo desenho animado, até dormir deitado eternamente em berço esplêndido. Ele morreu sorrindo.

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