Reinar a utopia pueril enquanto é tempo

que futuro, que passado,
o que você quer ser?

Era uma simples tarefa de casa. É bom colocar pra treinar redação. A professora da quarta série entrou cedo de ansiedade; 'fizeram, turma?' com sorriso estabafonético, como diriam os pequenos.

A loura não perdeu a oportunidade de ser a primeira: vou ser médica, vou ter um carro rosa e dar cambalhotas como os power-rangers. O magrinho, ajeitando o óculos, disse o previsível; quando eu crescer vou ser como meu pai. E assim seguiu até a vez de Mariazinha.

-E você Mariazinha, o que vai ser?

-Eu ainda não sei.

-Poxa, não sabe?

-Aliás, sei. Mas sei o que vou ser quando morrer.

-Quando morrer? O que você vai ser quando morrer? Alguns colegas chegaram a rir baixinho, mas ela terminou o que tinha começado.

-Um adjetivo, professora. Um adjetivo.

E aproveitando o silêncio:

Um adjetivo. Bom, não posso ser história, porque esta tem início, meio e fim. E autoria. Se fosse uma palavra qualquer, por sinal, eu não gosto desta palavra 'qualquer', podia entrar em mero desuso. Não queria designar um nome, um objeto, só queria o reticente. Um adjetivo, pra qualificar, pra modificar, pra ser usada por bocas em ocasiões, por textos com pretensões, por séculos. Atravessar a humanidade, perfurando civilizações inteiras, dispensando traduções, admitindo todas as interpretações. Não me prenderão em livros, me manterei viva em todas as sinapses nervosas, por mais que a inquisições me cremem, meu ciclo não é matéria, meu ciclo é memória, meu veículo não é olho, é o detrás do olho, meu veículo não é boca, sonoridade e cordas vocais, é arrepio e função poética de estranhamento. Ser um cheiro inexistente, uma cor indefinida, não serei ondas mecânicas, serei o questionável dos céticos, entregarei a fé na crença do inexplicável, o Deus do abstratismo, impalpável. Mais que uma lenda morta, um mito vivo. Só isso.

Comentários

Martins disse…
"meu ciclo não é matéria, meu ciclo é memória, meu veículo não é olho, é o detrás do olho, meu veículo não é boca, sonoridade e cordas vocais, é arrepio e função poética de estranhamento" !!!!!!!!!

Como se diz na Bahia:

VIXEEEEEEEE !!!!!!!!!!!!!!!

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