Abre aspas.

Ninguém soube com certeza quando começou a perder a vista. Mesmo nos seus últimos anos, quando já não podia se levantar da cama, parecia simplesmente que estava vencida pela decrepitude, mas ninguém descobriu que estava cega. Ela o percebera desde o nascimento de José Arcadio. A princípio, pensou que se tratava de uma debilidade transitória e tomava escondido o xarope de tutano e botava mel de abelha nos olhos, mas muito brevemente foi se convencendo de que afundava sem salvação nas trevas, a ponto de nunca ter tido uma noção muito clara da invenção da luz elétrica, porque quando instalaram os primeiros focos só pode perceber o brilho. Não disse nada a ninguém, pois teria sido um reconhecimento público da sua inutilidade. Empenhou-se numa calada aprendizagem da distância das coisas e das vozes das pessoas, para continuar vendo com a memória quando já não o permitissem as sombras da catarata. Mais tarde havia de descobrir o auxílio imprevisto dos cheiros, que se definiram nas trevas com uma força muito mais convincente do que os volumes e a cor e a salvaram definitivamente da vergonha de uma renúncia. Na escuridão do quarto, podia enfiar a linha na agulha e bordar uma casa, e sabia quando o leite estava para ferver. Conheceu com tanta certeza o lugar que se encontrava cada coisa que ela mesma se esquecia às vezes de que estava cega. Certa ocasião, Fernanda pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Úrsula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com seus quatro sentidos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmo percursos, os mesmo atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quando saíam dessa meticulosa rotina é que corriam risco de perder alguma coisa. De modo que quando viu Fernanda consternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistissem à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcançar: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisas perdidas é dificultada pelo hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las.

Págs 237/8

Comentários

Martins disse…
"a procura das coisas perdidas é dificultada pelo hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las"

;] Pense num livro !!! Haha

(acabei faz três meses e ainda n consegui começar mais nenhum... haha)...
Martins disse…
E morrer, morrer mesmo, só assim:

Capítulo 7
Último Parágrafo.

"_Vim para o funeral do rei." (em diante...)
Anônimo disse…
Achei lindo o trecho desse livro. Qual o nome dele?
Raísa disse…
Cem anos de solidão. Gabriel Garcia Marquez

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