Dona Roma.

Era início da manhã de uma terça-feira. Num quarto simpático e bem limpo, Dona Roma sente, aliviada, que está para acordar. Oitenta e sete anos de idade. Era uma senhora séria e doce. Há muito não enxergava mais e dependia da estereognosia preservada para reconhecer o ambiente e os objetos. Deitada sempre no mesmo canto da cama, ela, aos poucos, percebeu-se acordada. Sabia que estava no seu velho quarto e por suas memórias fotográfica e tátil, cada milímetro dele era conhecido. Nunca permitiu que alguém movesse, trocasse, retirasse ou adicionasse algo do seu quatro mapeado. Se algo do tipo acontecesse, ela sempre sabia e corrigia. Era terça-feira e ela estava acordada desde o início da amanhã.

Dona Roma permanecia imóvel, só ela sabia que estava acordada. Seus olhinhos miúdos pareciam não querer mais abrir o suficiente para a luz. Deviam estar cansados de ser janela de um mundo sem formas, como se tivessem perdido sua função e desistido do emprego. Ela não queria forçá-los. Ela não sabia se Deus era generoso ou insistente. Mas ao perceber-se acordada, Dona Roma sentiu um alívio. Sonhava horas antes com algo estranho, sem lembrar exatamente o que. Era uma terça-feira, mais uma de tantas já vividas, numa manhã que acabou de começar.

Já não estalava mais os dedos, mesmo assim tentou. Cansou da lista das coisas que "não mais". Bocejou, tossiu, deu para a casa seus sinais de acordar, mesmo sem tomar como intencional. A porta do quarto viva aberta. Não mais privacidade, não mais escolhas. Se precisasse de alguém, com sua voz rouca, com sua urgência em socorro, o acesso agora era livre para o seu quarto intacto.

Dona Roma estava velha e sabia disso. Não enxergava e ouvia mal, não duvidava de sua própria lucidez mas a lentidão era nítida, sem rodeios. Ela não esqueceu, só demorou de lembrar, ela ouviu mas demorou de responder, já não espanta moscas pois até conseguir elas já saíram do lugar. Lentidão é ser não-veloz, e velocidade é uma questão de tempo. Estava na cara, era só uma questão de tempo. Mas não, naquela terça-feira ela havia se cansado dos "não mais".

Ainda deitada, projetou cada micro movimento de acionar músculos e juntas. Estava determinada a sentar. Pescoço, tronco, braços, anseio, coragem e vontade. Dona Roma se montou como um brinquedo, sentou como se aquilo fosse uma experiência inédita, franziu a testa mais ainda e os olhinhos miúdos, desempregados, mantiveram-se fechados. "Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve."

Era uma glória, e seu corpo estava em festa. Mesmo no silêncio do quarto apático, ela sentia fogos de artificio e música dentro de si, sozinha. Não ouviu os passos, e só se deu conta da presença do filho quando ele a segurou pelos braços preocupado. Dona Roma não gostou. Estava tão bem em sua festa que não precisava de companhia. Ainda mais se esta tivesse cunho de repressão, como um padrasto que abaixa o volume do som por conveniência. Não gostou e chegou a sussurrar palavras de indignação. O filho se explicou sem sucesso. Sabia que sua mãe andava saudosista nos últimos dias e resolveu deixá-la aproveitar de seu grande feito e afastou-se.

Contrariando sua lentidão crônica, Dona Roma tentou fazer um gesto com uma das mãos que usava como apoio. Uma manobra muito arriscada. Tanto o foi que ela chegou a cambalear na beira da cama, sem forças nem velocidade para evitar uma queda diretamente ao chão. Seu filho sempre preocupado segurou-a como uma quem segura o "coração do oceano" evitando que fosse jogado ao mar. Sua mãe, uma jóia, teria seus ossos de oitenta e sete anos trincados como cristais se viessem ao chão.

Como arriscar-se em um pára-quedas, Dona Roma recebeu adrenalina suficiente para ter emoção extra numa terça-feira tão cedo. Chegou a senti medo, deveras. Mas não se arrependeu do risco que financiou sua festa particular. Achou graça e por hoje é só. Dormiu esperando sonhar estranho para sentir, numa quarta-feira cedinho, aquele alívio de perceber-se acordada mais uma vez.


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