"É a corda do meu coração"

Este texto é fruto de uma visita de duas horas a um povoado chamado Canoão. Estruturada entre aspas das pessoas que ouvi e comentários encantados de meus olhos embevecidos.

"Leva um casaco que lá venta. Você vai mesmo de havaiana? Vai encardir seu pé da terra vermelha de lá". Eu já tinha muita expectativa. Eu tenho costume de me apaixonar quando minhas expectativas são superadas justamente porque sou muito romântica e minha imaginação voa. Mas foi assim que aconteceu.

Antes de chegar eu realmente vi que as plantas da beira da estrada de terra eram ruivas, ruivas de poeira delicadamente depositada, ruivas de cor rubra timidamente imposta. "Quando eu passava as férias aqui levava uma semana pra tirar o encardido dessa terra vermelha do pé". Rubro como o sangue no meu nariz ressecado pela secura do sertão baiano. Preciso beber água, eu disse. Não precisou descer do carro e começou uma linda chuva de informação. "Pede água ali naquela janela, aqui é tudo primo" e "Olha ali, aquela casa branca foi onde sua avó nasceu".

A gente ia passar primeiro na feira, mas paramos logo pois já haviam acenos saudosistas. "Essa é sobrinha, ele é meu filho, aqui é cunhado, esposa, irmã." Já tinha misturado tudo, é muita gente, tudo bem. "Uma das coisas mais lindas que eu já vi foi quando presenciei de manhã, a fila de oito irmãos (naquela época, pois depois vieram mais três) na ordem de mais velho pra mais novo, indo pedir a bença ao pai e a mãe que ficavam sentados perto do fogão dizendo 'louvado seja o senhor Jesus Cristo', e ouvindo 'para sempre seja louvado'." Num ritual diário, obrigatório, natural. Tradição tão rígida como os galhos de uma árvore seca que resiste a esse verão.

Boas risadas, abraços e lembranças. "A gente voltava da roça comendo melancia, se melando todo, a poeira fazia lama na barriga, e a gente tirava a lama passando a faca pra gastar menos água no banho". História de parente epiléptico que morreu afogado em poça dágua que não molhava nem o calcanhar. "Naquela época o povo chamava de doença ruim e saia de perto com medo".
Coisas curiosas como "Meninos sentavam em volta da bacia na calçada pra esmagar o osso na pedra e dividir o tutano"
Recados na parede pra poupar o discurso repetido "Aqui não vendemos bebiba fiado, por favor não insistir."
Desafio de memória afetiva para os mais velhos "Quero só ver se você vai lembrar de mim"
Lamento sobre a anfitrianidade e relevação de hábito "Pena que o café acabou, aqui em casa, vinte pacotes não dá um mês"
Hábitos viciados e infelizmente conformados "Quando não bebe, nem sai de casa e não fala, mas só é beber quer ganhar o mundo"
Ranço lamentável de racismo antigo "Eu fiquei feliz quando soube que ia casar com ela, tão alvinha, ajuda a limpar a família"
Piadinha criativamente infame sobre sobre morte de marido alheio "Ele passava com o carrinho na porta da casa dela gritando "ovo e uva boa" fingindo que queria vender"
Ensinamentos firmes e garantidos sobre como ser mais saudável "Enjoei da água do quiabo, agora tomo chá de calunga pra baixar o diabete" (Essa ficou surpresa pois tava feliz que havia parado de comer açúcar mas não sabia que rapadura não podia)
E ensinamentos sobre os ensinamentos "Mas o gosto forte amarga, pra não vomitar segura a chave com força na mão"
Como demonstrar carinho "Vamos sentar, gente, ta cedo, se tivesse avisado antes eu tinha matado a galinha"
Como retribuir carinho "Quero café não, eu vim aqui pra ver você"

Algumas pessoas veneram cinema, carros, Beatles, praia, livros. Eu já descobri que gosto de gente.

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