Comprimidos azuis

Um paciente compensado, suspendeu seu neuroléptico e ficou estável sem medicações. Feliz, sorriu, devolveu a cartela durante a consulta e disse: trouxe pra farmácia, vai que tem alguém precisando. Achei lindo. Tudo, a melhora do quadro, o sorriso e a empatia com o próximo. Quando eu me lembrei de devolver, a moça da farmácia havia ido, coloquei na mochila e lá ficou por algum tempo. Sempre que me lembrava que havia esquecido, a frase reverberava em minha cabeça “vai que tem alguém precisando”.

A psiquiatria é uma área médica fantástica na minha opinião. É engraçado a reação das pessoas quando eu digo que vou ser psiquiatra. “Poxa, que coragem”. Eu também acho. Tem muita coisa triste no mundo da loucura, é verdade. Mas ele é amplo, e psiquiatra não é “médico de louco”, não apenas. É médico dos bulímicos, dos ansiosos, dos insones, dos dementes, enfim. Ver um paciente melhorar é simplesmente impagável. Tratar de um paciente que não melhora (ainda) é um desafio.

Dona M, setenta e três anos. Todos os dias ela aparece no consultório com a mesma blusa azul. Ela não é minha paciente, o neto dela que é, 11 anos de idade. Digo idade na certidão, pois no desenvolvimento é um tanto mais novo. Dona M. é dona das frases que mais me desestabilizaram em dois anos de estágio em psiquiatria. Mas não eram frases de lamentações ou queixas das situações sem jeito. Era impressionantemente o contrário. Ela me dizia coisas extremamente tristes num tom conformado, quiçá jocoso, e ria, sempre terminando com uma frase de auto-acalanto.

Ela dizia assim: “minha filha também não é muito certa. Eu já disse pra ela procurar um médico, mas se irrita, diz que não é doida, quebra tudo e briga comigo. Já tentei de tudo. Quando E. nasceu, eu agradeci a Deus, achando que eu tinha ganhado um neto que fosse me ajudar a dar conta da filha que tenho. Mas ele nasceu pior.” E dava risada. “Mas não tem jeito, família é família, eu cuido dele como filho e oro todos os dias por ele”. O garoto era epiléptico e tenha retardo mental moderado com um grau de irritabilidade importante; baixo limiar de frustração.

Um certo mês a gestão nos fez o favor de deixar faltar medicamento. Custa menos de cinquenta centavos cada cartela de comprimido. Para dona M., me mostrou um corte na sobrancelha de uma pedrada que levou do neto. Quando ela me contou desesperada que ele estava muito pior eu lembrei do “massacre de Realengo”.  Um cara entra numa escola armado e mata 12 crianças. Isso não foi nos Estados Unidos, foi no Rio de Janeiro. Me lembro de um professor meu dizendo “o governo não investe em saúde mental, porque os pacientes de transtorno mental são até hoje rejeitados e excluídos. Mas a falta de investimento neles traz um prejuízo muito maior quando eles estão descompensados”. (!)

No meio da preocupação me lembrei que tinha comprimidos azuis na minha mochila, daquele paciente exemplar que havia devolvido. Ela dizia “todos meus irmãos já se foram e eu ainda estou aqui, as vezes me pergunto o porquê, se era melhor ficar aqui mesmo, sabe?”. Uma senhora com seus setenta anos e sua blusa azul de sempre, corcunda, cansada, dando conta sozinha de um pré-adolescente agressivo, sem poder se defender. Quando a gente envelhece e cansa, a gente precisa de quem cuide da gente. Ela poderia resmungar, lamentar, ela tem motivos pra reclamar da vida todos os dias antes de dormir e ao acordar. Ela dorme com medo e acorda com coragem, ela tinha respaldo para ser triste. Mas quando viu os comprimidos azuis que eu tinha ela sorriu muito, agradeceu e disse “ta vendo como a vida é boa?”.

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