Sobre papinhas e caquinhas
(Apesar de estar em primeira pessoa, esse texto tem propósito de ser universal e não um relato pessoal. Mesmo que, infelizmente, ele não pode ser aplicado a todas as realidades brasileiras, vale a reflexão sobre os temas.)
Marco zero. Você
come pelo cordão umbilical de forma contínua, e faz um
cocô limpinho na barriga da sua mãe.E então você nasce.
Etapa um: Você uma
hipoglicemia básica, pois te tiraram aquela fonte de açúcar "molezinha" e também faz a sua
primeira caquinha de verdade que, por sinal, é tão especial que tem até nome:
mecônio.
Etapa dois: Você
fica irritado e não entende o que está acontecendo, é uma coisa nova: fome. Com o
tempo você aprende que manifestar sua irritação chorando vai aparecer um peito
com leite quentinho pra você sugar e engolir. Então você fica cheio e satisfeito e faz
caquinha ali mesmo, em qualquer lugar, a qualquer hora, com fralda ou sem fralda,
alguém vai vir limpar.
Etapa três:
Depois de aprender a chorar pra mamar, você começa a perceber que isso não vai
ser uma regra imediata. Sua mãe também precisa fazer outras coisas. Nasceram
umas coisas estranhas na sua boca e depois você descobre que aquilo branco e
duro são os chamados dentes e que agora você vai ter que mastigar antes de engolir! Mais um
esforço: tenho que avisar que estou com fome, tenho que esperar e agora vou
mastigar. Tudo bem, querem que eu use essa colher, mas eu também vou me
divertir, vou melecar tudo e meter a mão aqui e ali, alguém vai vir limpar. Em
compensação estão me dizendo que agora eu não posso fazer cocô simplesmente
quando eu quero? Como é isso? Segurar? Até achar o que? O lugar certo? Então
ta, né, agora eu sei que existe um lugar chamado vaso sanitário e que agora
eu só posso fazer la. Mas também é só fazer, depois alguém vem limpar o vaso.
Etapa quatro:
Panelas, almoço, frutas com caroço. Eu prefiro essa bolacha que eu só preciso
fazer duas coisas: mastigar e engolir. Mas a mamãe disse que tem muita "gordura
trans", e seja lá o que for isso, a bolacha é tão mais doce que a uva! E essa uva
tem caroço! Dá trabalho. E também estão me dando folhas coloridas e outras coisas que
ficam na água quente cozinhando. Mas a batatinha frita de saquinho é crocante e tem brinde
dentro! Não entendo porque isso de descascar, lavar, ralar, que trabalho! Mesmo
assim eu como, né, já tá aqui na mesa, tudo pronto, eu como, mas eu tiro a cebola,
claro, coisa nojenta. Nojento mesmo é passar água no prato, mas eu vou fazer
isso agora porque a mamãe disse que se eu deixar o prato sujo a comida endurece
e fica mais difícil de tirar depois. Mas as vezes eu não faço isso porque depois alguém vem lavar.
Etapa cinco: Como
pode essa aula terminar 12:30? Agora você tem compromissos
e horários. E o que você come e quando você usa o vaso vai começando a ter que se adaptar a uma coisa chamada:
rotina. Além disso, você começa a perceber que nem todos os desejos serão
realizados, nem de comer o que se quer, nem na quantidade que se quer nem na
hora que ser quer. Então você vai se ajustando. "Esse dinheiro pro lanche não é pra comprar porcaria", mainha dizia. Mas churros é tão
bom, como pode ser chamado de porcaria. Eu prefiro sorvetes com confetes coloridos e
coca-cola, que mesmo sendo preta tem uma propaganda tão legal! Como pode ser
algo ruim?
Etapa seis: Minha
mãe insiste em me fazer gostar de brócolis, mas eu acho o gosto tão ruim e acho injusto forçar a barra, sabe, agora eu sou adolescente e sei muito bem o que
eu quero, e ninguém pode mandar em mim. "Querido diário", mês passado na festinha da Rê um paquera me deu
cerveja eu achei tão ruim mas tão ruim, que tive que segurar a careta. Mas meus amigos acham bom então eu comecei a achar também. Estou descobrindo o mundo e sei até
que existem outros lugares para se fazer merda além do meu amigo vaso. E todo
mundo faz, meus amigos tem histórias legais, faz parte da idade e agora eu sei
que dá pra limpar.
Etapa sete:
Pronto, agora que eu sei o que eu quero fazer, tô começando a ter autonomia e
com isso uma coisa veio junto chamada responsabilidade. Ou seja, eu sei que o
que eu faço é culpa minha então eu faço e limpo, faço e limpo, e vou fazendo e
vou limpando até que, putz, essa aqui ta dando muito trabalho pra limpar,
velho, acho que exagerei, sabe. Então, outra coisa que eu to vendo é que aquilo que meus pais me davam para me proteger agora eu mesmo vou
ter que colocar porque as consequências nem sempre são tão simples, me veio, enfim a noção de
limite.
Etapa oito: Minha
energia não é mais a mesma, sabe. Eu já fiz tanta coisa que agora eu começo a
selecionar, né. Já sei o que pode dar merda e já me livro do trabalho que isso
poderia me dar se eu fizesse. Se eu faço e eu limpo, eu não escolher o que
fazer e começar a fazer de um jeito que não suje tanto, sabe, é uma questão de
prudência e equilíbrio. Eu comecei a ver que ter trabalho e cuidado durante a
execução pode me ajudar muito no final, eu gasto a energia agora e pra
economizar depois. Já saí de casa e
agora eu me viro na comida, compro pizza e sanduiche que alguém já fez pra mim.
O dinheiro é meu, mas o trabalho não. E meu amigo vaso, sou eu que limpo agora.
Etapa nove: Não
aguento mais comer pizza, já troquei a marca mas esse tomate, sei la, quando eu
como a salada de domingo que minha mãe faz na hora é tão melhor. Aí, procurei
receitas, baixei aplicativos e até mesmo tirar dúvidas com minha avó no
whatsapp ta rolando. Mas veja, quem diria, a cebola que eu separava, hoje tem o
cheiro que mais me anima, o cheiro de uma comida que vai começar a ser
preparada, hum, picar cebola, refogar cebola, temperar cebola. No começo deu um
trabalho, eu chorava (mas era só por causa da cebola, claro) mas minhas espinhas
ficaram melhores, e eu comecei a economizar dinheiro, perder peso e ao invés de gastar na rua
e comecei a fazer a comida do jeito que eu gosto. Outro dia eu tava pensando
que abrir uma lata de refrigerante continua sendo tão mais simples, e ele tem
um gosto tão bom, né. Quando eu penso em descascar laranja, cortar laranja,
bater laranja no liquidificador e peneirar bagaço, eu lembro daquele anel de
metal que libera o gás que faz o som da praticidade, da simplicidade e também
da celulite e pré-diabetes.
Etapa dez: Esses
verduras estão tão coloridas que dá para fazer um desenho de um rosto, cabelo
de brócolis, nariz de azeitona, que engraçado, lembrei de quando minha mãe
fazia isso para que eu pudesse gostar de comer coisas saudáveis. Taí, gostei. Quando eu tiver um filho, eu vou preparar tudo do melhor para ele, a começar de
agora, já que comendo bem eu vou ter um organismo mais saudável pra quando ele
tiver no marco zero e se alimentar pelo meu cordão umbilical.
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