Ter a clareza do que não se quer ser

Ao passo em que vamos atingindo a fase adulta, as bifurcações que encontramos no caminho nos fazem ter que escolher por onde ir, e consequentemente onde chegar. Algumas escolhas podem ser feitas de maneira demorada e outras nem tanto. Esse conjunto de decisões vai nos dizendo muito sobre nosso conjunto de valores, quais são as nossas prioridades, quais elementos serão importantes para serem alcançados e medidos na sua régua (individual) do sucesso.

Pois bem, atualmente com 27 anos, terminei a faculdade de Medicina ano passado querendo ser psiquiatra para trabalhar com Saúde Mental (na realidade, era muito mais que querendo, havia uma certeza de que se não fosse psiquiatra não seguiria a carreira médica). Isso aconteceu porque, durante minha formação, fiz um estágio de extensão universitária e viajava para o interior da Bahia com um grupo de colegas e o tutor do programa, um psiquiatra excepcional. Depois de estar perdida achando que seria cirurgiã ou dermatologista, eu finalmente me vi fazendo algo que fazia sentido pra mim. Nessa experiência do estágio nós fazíamos além do atendimento ambulatorial através de consultas clínicas individuais, outras atividades de cuidado como visitas domiciliares, atividades em grupo e capacitação de agentes comunitários de saúde.

Quando eu me formei, percebi que antes dar seguimento e continuar estudando, precisava trabalhar enquanto médica, também chamada como "clínica geral", para ter mais experiência, segurança e desenvoltura no atendimento e convivência com pessoas, coisas que os livros não ensinam. Hoje estou no segundo ano de especialização em Medicina de Família e Comunidade, essa escolha foi recente e não planejada, mas vejo o quanto está sendo fundamental para mim. Eu não desisti de fazer a tal Psiquiatria, mas posterguei esse momento para conseguir não ficar na caixinha do modelo hospitalocêntrico e medicamentoso que as residências andam oferendo como aprendizado prioritário.

Quando me perguntam o que eu vou fazer da vida, eu consigo responder que me imagino sendo plena se eu conseguisse trabalhar como profissional do cuidado com foco em saúde mental, mas atuando na atenção primária, dentro do território e realidade das pessoas, mas também com o pé no ambiente acadêmico sendo professora ou preceptora. Percebi com o tempo que essa seria a fusão de duas prioridades que aprendi a ter por conta dos ensinamentos da minha família: Saúde e Educação. Bem clichê, confesso.

Confesso também que essa clareza de hoje eu tenho após algumas (várias) reflexões, e especialmente por saber exatamente o que eu não quero ser. Segue a lista das coisas que me incomodam e serviram de norteadoras "ao contrário", me ajudando a saber o que não quero fazer:

- Eu não quero trabalhar de forma em que haja uma distância entre mim e as pessoas, sejam pacientes ou colegas de trabalho. Essa verticalização, hierarquia, diferença no tratamento, na verdade me incomoda; 
- Não quero ser uma médica tão especializada que fique a vida trabalhando com um segmento específico, de forma que quando alguém apresente um problema "fora da minha área" eu diga "não é comigo, não posso te ajudar". Na verdade, me incomoda essa segmentação das pessoas em pedaços, e isso inclui avaliar questões de Saúde Mental como se fosse algo separado do corpo físico;
- Não quero ser aquele médico que atua profetizando o que é o melhor pra pessoas, recomendando coisas que nem eu mesma não faço, como se não bastasse a hipocrisia, a ironia de não poder servir de exemplo nem pras próprias sugestões, é estranho, me incomoda;
- Não pretendo cair da loucura de sacrificar a minha própria saúde física e mental por conta de carga horária e condições de trabalho adoecedoras, afinal como poderei cuidar do outro se eu não cuidar de mim?
- Não gosto do funil de acesso que o atendimento privado ou em serviço especializado tem. Tenho de forma clara que uma das coisas mais angustiantes é tentar resolver um problema que deveria ter sido trabalhado desde muito antes, não gosto da sensação de que "era pra ter cuidado disso desde o começo, agora ta bem mais difícil", isso também me incomoda, eu acho acesso oportuno a serviços de saúde algo fundamental
- Outra coisa que me incomoda é o estigma que ainda existe com a palavra "psiquiatra", eu vejo quantas pessoas possivelmente beneficiadas deixam de procurar ajuda com medo de taxações externas, tenho alguns motivos pra querer interferir na saúde das pessoas de maneira integrada, preventivamente, atuando no bem-estar e rotina, sem precisar esperar que as coisas piorem para que me procurem.

Eu tenho noção de que isso aí vai ser bem mais trabalhoso do que se eu seguisse uma carreira médica mais tradicional de "escolhe uma área, monte seu consultório e dê o seu melhor em âmbito individual". O meu melhor eu darei com certeza, mas acho o trabalho em equipe mais potente, o atendimento público mais justo, a atuação em serviços de porta de entrada mais oportuna e a abordagem sem segmentação das pessoas mais lógica e efetiva. Pode ser que nessa luta de querer trabalhar pelo SUS dentro do contexto político atual e contra o modelo hegemônico mais lucrativo me canse ao ponto de eu ter que moldar essas escolhas para poupar a minha saúde mental, quem sabe. Mas pelo menos hoje, enquanto eu ainda tiver vigor e energia, eu vou procurar sempre aproximar minha atuação profissional dos meus princípios pessoais para trabalhar fazendo o que gosto e faz sentido pra mim.




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