O fotógrafo

Em 2005, eu estava no primeiro ano do ensino médio, em Itabuna. Por sorte minha ainda existia aula de artes e professores aptos a dar aula de artes - que não apenas ensinam a História e os grandes nomes, mas sabem explorar a sensibilidade e criatividade de cada um. Houve um dia em que a professora chegou com um pedaço de papel amarelo, quadrado e pequeno, que cabia na palma da mão. Era um trecho de uma poesia, por sinal, de Manoel de Barros. Eu não me prendi ao nome de quem o escreveu mas guardei depois da atividade. Anos depois, quando fui fazer vestibular e conheci 'O livro das ignoranças', pelo qual eu me apaixonei, eu me lembrei daquele papel amarelo e percebi que os dois pertenciam ao mesmo autor. Enfim. Não comecei esse texto pra falar de Manoel, é que sempre me excedo em introduções.

Bom, o papel amarelo dizia assim:

"O Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio. Entretanto eu tentei...
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Manoel de Barros"

A atividade consistia em tentar fazer uma montagem, usando as revistas velhas e picotáveis, pra representar o silêncio, o perfume, a existência, o perdão e o sobre. Aquilo era muito difícil, todo mundo só tinha achado os frascos de perfume em propagandas. Eu perguntei se podia desenhar, e desenhei. Foi mais fácil, mas não deixou de ser difícil e a professora gostou.

E foi lembrando desse episódio que comecei a pensar mais profundamente em fotografia. Pelo meu cálculo estimado 1874683 zilhões de fotos são tiradas por dia. "chega mais um pouquinho pro... aí! tá ótimo, click! Pronto... ficou jóia".

Eu sempre gostei de foto, a melhor parte era 'olha o passarinho', mesmo sem passarinho nenhum. A não ser que eles ficassem dentro do seu olho depois dos flsahes de antigamente. Mas eu gostava mesmo era de vê-las, de perguntar pra minha mãe 'quem é essa do seu lado?' e ela respondia me contando histórias embutidas naquela imagem. O que eu mais gosto das fotos é seu resgate, sua atemporalidade.

Nos tempo antigos, o mais talentosos pintores faziam de seus dedos e destreza ferramentas intermediárias entre tintas e tela branca. Eram contratados em sua arte perfeccionista pra reproduzir a realidade e deixar registrado os perfis dos homens e mulheres 'mais importantes' dos tempos, sem deixar passar nenhum detalhe de exibição em ouro, pedras reluzentes, veludos, cedas e poder. E foi assim com todas as artes; pintar, esculpir, escrever, artifícios que atravessam o que talvez seja a única coisa que o homem nunca vai conseguir dominar: o tempo.

E o tempo passou. Hoje não se fabricam mais filmes de 36 poses, não é preciso mandar revelar para ver como ficou, só é preciso um dedo. É pixel que não acaba mais, todos os tipos de adaptações de foco, contraste de luz, nitidez, cores, captação de detalhes, tudo, tudo isso a máquina faz. A Arte de reproduzir a realidade se tornou simples, prática e caiu na mão do popular, 10 vezes no cartão e não precisa ter computador.

No meio de tantas facilidades, o raro da fotografia deixou de ficar no depois, no resultado, na imagem em si. As milhões de possibilidades fizeram com que os olhares atentos se voltassem mais para as peculiaridades das coisas, no sentido delas, no porquê de fotografá-las. Entretanto, o culto ao belo ainda é subtópico da ideologia vigente, e o mais frequente é querer guardar pra si o que se viu de belo, de encantador. O caso é que as pessoas armadas com suas câmeras fotográficas, miram e congelam o previsível, o que é confortável aos olhos, o que é exuberante ao senso comum.

Ao produzir uma bela fotografia quando se tem um estúdio, com luzes minuciosamente posicionadas, mulheres maquiadas, com seus cabelos ao ventilador ou quando se está em um lugar bonito, com cores vivas e clima estupendo, o complicado é resgatado enquanto quanto à técnica, na dificuldade que se tem em buscar a perfeição. Porém, uma fotografia projetada não revelará através de lentes nada mais do que os olhos nus já vêem, o que é convencionalmente belo.

O 'quê' de um foto é o que ela quer mostrar. É mais do que achar o melhor ângulo de uma praia e fazer propaganda de turismo. É muito mais do que exibir um produto, convencer pelos olhos, atrair pela superfície, é mais do que ter habilidades em se fazer montagens artificiais. A poesia de uma fotografia está no que o fotógrafo quer dizer quando a tira. Fotografar é mais que revelar imagens, é deixar exposto um ponto de vista, um jeito de olhar o mundo, um estilo.

A arte do fotografia está em conseguir mostrar o belo nos caminhos de rotina para as pessoas que sempre por ali passam mas não o enxergam. É conseguir mostrar o imperceptível, o camuflado, é exibir as minudências que o tempo todo são ignoradas. É propor um novo sentimento só em mudar de ângulo, e causar estranhamento mesmo mostrando clichês. Emissão de detalhes, exploração de cores, jogo de sombras, movimento estático, e o abstrato. Excepcionalmente o abstrato, bem como Manoel me ensinou.

O fotógrafo sabe que o que se quer mostrar não deve vir ao centro. Sabe que o preto e branco valoriza o sentimento, sabe que o melhor estúdio é o céu aberto e a melhor edição é pegar os raios de quatro e cinquenta da tarde. Sabe que as melhores fotos são as não avisadas. Sabe que não é preciso correr atrás das cores, as melhores são as mais invasivas. O bom fotógrafo sabe que em suas fotos se tem cheiro, se tem sons, sabores e emoções. Sabe do poder que uma foto tem de resgatar lembranças, atiçar saudades, derrubar lágrimas e contar, dizer, fazer sobrancelhas se juntarem, cantos de boca subirem.

O bom fotógrafo sabe e quer deixar guardado tudo aquilo que lhe causou estranhamento e sensações diversas, ele se alimenta de reminiscências e vive em dar de presente, a tudo que um dia o cativou, uma prova de amor, o mais divino e sagrado presente que a humanidade anseia: a imortalidade.

Comentários

Fernanda G. disse…
haaaaaaaa,
lembro mesmo desse pequeno verso de Manoel. Caramba, se não contasse essa história com tantos detalhes não ia lembrar nunca. Ow memória de elefante, Senhor.rsrsrs
relamente, hoje a qualquer momento, com uma siples camera podemos fotografar aquilo que a memória tanto gostaria de guardar. o famoso "ahh, se meu olho fotografasse". Felizmente isso já pode se tornar real porque realmente quando vemos todas as fotos ja vividas lembramos de todo momento aproveitado.
hj eu tento comparar fotografia x raisa dourado. Só encontro meras semelhanças. Nas suas fotos pode se ver passado... presente! E por que não dizer futuro!?Sim, vejo GRANDE futuro.
Preciso de mais momentos maravilhosos ao seu lado, para dessa vez poder lhe fotografar, coisa que fizemos pouco durante nossa amizade.
te amooo. bjos nenem.

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