Sentar-se de costas pra janela

Dis.tra.ir vtd 1. Desviar, afastar (o pensamento, o espírito); 2. tornar desatento, negligente; 3. divertir, recrear; 4. fazer esquecer; vp 5. descuidar-se, esquecer-se, desviar-se; 6. divertir-se.

Bom, eu me divirto com pessoas desatentas. 

Aliás, tenho em mim uma distração de prestar atenção - permitam-me o trocadilho - em pessoas que desviaram seus pensamentos por algum instante, e isso é divertido. Esse texto começa assim, e eu juro que não tinha intenção de brincar esse jogo de semântica. Digo que eu, em estado de desvio, afasto de mim pensamentos intrínsecos e pouso a minha atenção em observar, pessoas, gestos, falas, expressões, situações, que nascem do descuido, que são comuns e nem por isso pouco simbólicas, que são simples e nem por isso insignificantes.

Por isso, gosto de salas de espera, filas, engarrafamentos, praça de alimentação e do percurso das viagens. São ocasiões que dividem o antes e depois das atividades, são o meio termo, o intervalo, a pausa do 'piloto automático da rotina'. É como se nessas situações, o espírito da gente pudesse falar por si só, é a oportunidade de as vontades saírem sem passar por processos seletivos, como se os olhares perdidos fossem o estado de transparência. Uma pessoa distraída tem uma sintonia mais livre, não se policia, não pára pra pensar se tem alguém reparando nela. E é assim que as pessoas se mostram; no desvio, no descuido, na distração.

Então. Foi enquanto eu estava praticando a arte de esperar que uma menininha fisgou minha atenção. E se a distração ativa a sinceridade das pessoas, imaginem que esse efeito é mais aguçado e mais frequente em crianças. Não me lembro quantos anos ela aparentava ter, que roupa usava, o que fazia antes que eu a observasse. Me lembro que ela estava de frente a uma daquelas máquinas típicas de área de lazer de lugares públicos, onde põe-se uma moeda e ganha-se uma bolinha de cor muito forte, não sei que material é aquele, mas sei que ela pula muito alto e some com facilidade. Parecia uma cerimônia para um momento de glória, ela versus a máquina, e sua arma, uma moeda. Assim que ela colocou a moeda, percebeu que a saída da bola ficava muito abaixo do buraco-para-moedas e agaixou. A bolinha não estava lá de imediato, estava descendo, assim no gerúndio, deslizando, fazendo um caminho em espiral pelo ventre da máquina transparente.

Pela expressão do rosto dela aquilo era quase mágica, era algo muito grandioso e lindo. Levantou embasbacada e grudou na perna do pai dizendo: olhe! Ele, muito ocupado ao conversar com alguém que eu não me lembro, não ouviu, não olhou, não virou, não se mexeu. Ela puxou a calça e chamou mais uma vez e depois virou pra máquina. A bolinha já estava lá no seu lugar de saída, pronta pra se desprender de seu bando e fazer a felicidade de uma criança, quicando, quicando até sumir. Eu não sei descrever a expressão do rosto dela por ter perdido o espetáculo que ela mesmo desencadeou. Não tenho palavras pra isso, sou pobre. Se servir uma conclusão, digo que aquilo me fez lembrar de quantas vezes viramos pro lado de fora da janela, pra chamar alguém, mostrar o que se passa aqui dentro, e assim de costas, deixamos de ver e viver o que para alguns pode ser uma bobagem descosiderável mas para nós é algo altivo e estupidamente inefável.


Comentários

Anônimo disse…
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