O poste e a buzina

Essa história se passou num ponto de ônibus. Ou melhor, no próprio ônibus. Dispensável minhas descrições sobre o ponto de ônibus, as pessoas no ponto, esperando o ônibus. Só vou dizer que eram seis horas da noite. Seis horas da noite tem cheiro de café preto, tem som de rádio em ave maria, tem cor de Sol avisando que volta mais tarde, tem a sensação dos pés quentes e antes amassados pisando o chão gelado da cozinha. Mas eu não tinha chegado em casa ainda, eu tava no ônibus, bem como as outras pessoas que esperavam o ônibus e tembém queriam estar em casa.

As pessoas que descem num lugar próximo, quando o ônibus não está cheio, sentam na cadeira do corredor pra quando tiverem que descer do ônibus não se esfregarem na pessoa que sentou do lado e vai descer daqui a duas horas. As pessoas que descem só daqui a duas horas sentam na janela, pra quando a a pessoa que tiver do lado, que desce num lugar próximo não se esfregue nela. Mas essa regra só vale em ônibus vazio, não no ônibus de seis horas da noite.

Hoje eu sentei no corredor, isto pode ser bom dependendo da situação; ou você se sente mais livre do que a pessoa da janela, ou você fica mais apertado por causa das pessoas que estão em pé, no corredor. Tinha um moço sentado na janela, ele fazia o que as pessoas fazem quando sentam na janela; ficam olhando através dela. Isto significa que você pelo menos tem alguma coisa pra fazer no ônibus, diferente de quem senta no corredor, que vê pouco e quase não pega o vento. O moço olhava, mas não usava do artifício "estou olhando pela janela, ou seja, não converse comigo", sorria e parava como quem assiste um filme ou conta uma história.

O trânsito esatava levemente engarrafado, eu pensei em conversar. Iniciar a conversa com "oi, tudo bom" não é sinal de quem quer conversar, afinal, qualquer um sabe a resposta, pois mesmo que seu mundo esteja desabando você responde "tudo e com você", pricipalmente se a pessoa que perguntou é estranha. Se eu iniciasse com uma pergunta, pode soar invasivo e nem todo mundo gosta de responder. Talvez uma frase. Frases são pra final de conversa, e não pra início. Então eu me resolvi:

-Eu podia passar trinta minutos sentada olhando pro nada, figindo que ninguém está do meu lado e nada ia contecer.
Ele percebeu que eu estava falando com ele e me olhou.
-Mas também podia tentar começar uma conversa sem parecer que sou maluca ou carente afetiva.
Fiquei com medo da resposta facial do moço. Se ele franzisse as sobrancelhas eu pararia, mas ele respondeu com palavras mesmo:
-As vezes eu sinto vontade de conversar e tenho esse mesmo receio.
-Ótimo.

Um ponto em comum é a gota que faz transbordar qualquer conversa. Um ponto em comum é um bom início, e não pareceu que eu era maluca ou carente afetiva.
-Bom, pra não ficar como uma conversa programada de elevador, escolha você um assunto, já que foi eu quem começou. O mais aleatório possível. Olhe pela janela.
Ele sorriu e foi escolher o assunto pela janela. Antes da escolha eu interrompi:
-Uma coisa: você acha que filosofia é uma coisa de quem não tem o que fazer ou que ela está todos os dias em você?
Milésimos de segundos depois de ter fechado a boca eu me arrependi de ter feito a pergunta, e meio milésimo depois nao me arrependi mais. Eram trinta minutos ali, eu não disse meu nome, e a probabilidade de eu encontrar aquele moço de novo seria muito pequena.
-Não só em mim como em tudo que vejo.
Dessa vez eu que sorri.

Ele virou pra escolher o assunto bem numa curva quando a velocidade do ônibus aumenta e as pessoas se seguram pra nao despencar por incércia, naquele giro rárpido, ele quase gritou:
-O poste! Foi alto e algumas pessoas olharam.
-O poste!
-Pois bem, me conte: o que você pensa sobre o poste?
Antes de responder eu procurei sentir na intonação da pergunta, pra saber se ele realmente queria saber o que eu achava sobre o poste ou só perguntou pra não acabar com a minha brincadeira.

-Olhe, o poste é muito mais do que você vê. O poste é a metáfora em forma de concreto que comprova um dos clichês mais antigos: o essencial está no que não se vê. Olhe só o poste. Ninguém olha o poste. As pessoas olham o semáforo, porque brilha e a auto-escola mandou. Mas o poste, coitado, ninguém olha. Ele ainda sofre, fica no mesmo lugar todos os dias, é mijado por cachorros e decorado com anúcios de cartomantes. Mas ninguém olha. Um dia ele resolve apagar e as pessoas reparam, "mas que rua escura né, olhe, foi aquele poste que apagou". Um poste faz a diferença em um dia de assalto. Se chove e ele resolve despencar, não uma rua, mas um bairro pode ficar sem luz. Tudo por causa do danado do poste, que sempre esteve lá, mas só dão conta dele quando ele não está.

-Você penso nisso tudo agora? Depois disso, quando eu ver um poste, vou lembrar você.
-Olhe que existem muitos postes viu?
-Agora escolhe você o assunto.
Quando ele terminou de falar, alguém ia descer e puxou a cordinha: Fiiiiii.
-A buzina.
-Buzina, boa, buzina. Lembro de uma vez que um primo meu foi aprender a dirigir na roça e tinha uma galinha no caminho - Eu tive que interromper:
-Tinha uma galinha no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma galinha.
-Hé! Ele parou e buzinou para a galinha, mas como a galinha não se moveu disse: "mas que galinha burra viu, sai da frente". Eu me perguntei "mais burro seria a galinha que não reconhece a buzina, ou o primo que não reconhece que a galinha por ser irracional não reconheceria a buzina?". Pensei em perguntar isso pra ele, mas perferi assim: "olhe, quando passar por ali, buzine pro buraco sair".
-Boa! Hahaha
-Posso escolh...
-Jesus, meu ponto! Eu tenho que ir. Levantei rápido pra dar tempo, nem me dei conta que não tinha perguntado o nome do moço. Mas ele foi mais criativo
-Até mais Seu Poste!
-Até, Dona Buzina!

A cara das outras pessoas no ônibus foi o motivo de eu sair rindo. Trinta minutos de silêncio substituídos por risadas e uma história. Bom humor não vende engarrafado, pode vir até em engarrafamento e não custa nada.

Comentários

Martins disse…
Muito Bom !

E foi Real ??!
Se sim, TU é uma figura ainda Mais notável kkkkk

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