Pardais e prelúdio matinal.

Se não for terminar, não comece.

Meio de semana, acordo em meio a madrugada. Fome, sede ou vontade de ir ao banheiro. Esfregando os olhos procurei o que me acordara. Frio, barulho ou sonho. Que estranho. Simplesmente acordei e não sentia vontade de dormir. Mas também não sentia vontade de outra coisa fazer. O escuro, o silêncio, o travesseiro. A trindade me fazia companhia mas não me persuadia. O clima que me permeou foi o mesmo que patrocina o meu ócio produtivo. Contrariando meu cotidiano; o horário incomum, mas o lugar de sempre.

'Lírio era escrito com 'y'', dizia o palestrante da quarta-feira. Na varanda tinha um Lírio. Ele abria em Setembro. Digo ele porque só nascia um. Um único sozinho, ímpar. Estupefatamente era o suficiente pra a varanda cheirar peculiar. Setembro. Varandas sempre foram o lugar de ócio produtivo, de praticar o nadismo, de perceber uma estrela sair do lugar, de não estar ali sem sair do lugar. Dá-me mil horas e uma vista. Das varandas por qual vivi lembro-me de cada ponto, paisagem, como foto em filme orgânico.

A primeira delas não era uma varanda propriamente dita, era uma janela. Eu pequena via o céu em pé, o telhado se pulasse. A segunda foi a maior delas, fazia um 'L'. Nela eu assobiava até o bem-te-vi da barriga mais amarelada aparecer. Ele me disse que gostava de me ver e eu assinalava a recíproca. Só esse ano minha mãe confessou que não acreditava que nós conversávamos. Depois de sutil brutalidade, percebeu minha cara e questionou sobre o que dizíamos. Era mera função fática, mãe. Perguntávamos e respondíamos ambos a mesma pergunta e mesma resposta. Mútua correspondência de existência, sabe. Talvez não, tudo bem. A terceira foi a menor, tinha um Lírio e quase um ninho. Não me lembro se pardal, mas um passarinho começou a fazer o ninho na lâmpada de parede. Essa parte do ninho é linda e triste, permita-me não contar. Detesto resumos. Detesto. Já a parte do Lírio é cheirosa, peculiarmente cheirosa.

Pés descalços em chão gelado, pés recém-acordados. Usei a meia ponta até chegar à última varanda. Nem maior, nem menor, mais alta. Mais perto do céu, mais vento, mais visão, mais ângulo para fotografar. Sentar sem cadeiras nem chão - não tem medo de cair? - o posicionamento já é quase um mastigar, sentar em meias paredes. Então, foi tu que me acordaste, pois, não tens o que fazer. Enquanto eu dormia a cidade estava acordada. Postes, janelas diziam o canal, carros poucos, todos sinalizavam a insônia de Salvador. Não estou ainda acordada, nunca dormi. De certa forma não é desvatagem, pra sua grandeza dormir, algo maior deve guiar de uniliateralmente as vidas que te regem acordada. Chernobyl dorme até hoje, e quem sabe mais um dez mil anos, tu queres este sono?

Decerto querias companhia, um pouco de conversa. Muitos minutos, me interrompo ao ver de fronte um portão um homem parado, indecifrável. Estava a esperar alguém sair, ou morador querendo entrar, ou visita em despedida ou veio a visitar. Mas que horas são. Ele bateu a porta e foi até um carro, ligou mas não saiu do lugar. Se buscar tivesse ido não teria ligado o carro. Se sair tivesse ido não teria no lugar ficado. Eu no meu imóvel me considerava mais livre do que homem no automóvel sem ter pra onde ir. Ele saiu e sentou no meio fio, mas que diabos. Essa parte eu conheço, ela dizia com seu ar de 450 anos. Humanos e complexidade afetiva; criaram a lógica de necessidades articifiais como guia ao sistema de ilusão, satisfação prévia, um ciclo. E ele acendeu um cigarro, ficou menos agitado e cheirando mal. Se seria o presente uma dádiva, aquilo tudo me deu sono.

Se ousar retirar-se, um desafio a tua coragem: experimente. O que me ofereces? Fique. Mantenha seus olhos abertos. Acorde o dia, antes que ele me acorde. Ouça o primeiro pardal cantar.

Comentários

DaMnation disse…
Eu não sei ao certo se o passarinho que acompanhei era um pardal, mas a pessoa que me vinha a cabeça eu tenho certeza. ^^

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