A véspera

-Raísa, são seis e vinte, anda. Ciça sabe que, quando o som não está ligado, eu ainda não levantei.
-Hoje eu não tenho os primeiros horários. Ela saiu e eu voltei a dormir, ou pelo menos tentei, até a minha irmã abrir a porta pra avisar que eram seis e meia. Eu não tenho os primeiros horários, é espanhol, ela estava com sono, É verdade, você me disse ontem. Dessa vez eu cheguei a cochilar pouco antes da vez do meu pai. Minha filha, você sabe que horas são, ele me perguntou franzindo a testa. Eu não tenho os primeiros horários hoje, é espanhol.

Parecia uma sexta típica, com mais despertadores, mas não era. Tive um déjà vu muito estranho na aula de química. Isso acontece quando você coloca a data no topo da página e aqueles não são apenas números. Números. Ás vezes eu não me dou muito bem com eles, são traiçoeiros, no relógio ou escorrendo por um lápis com pressa. O elevador demorou mais do que o normal; quando cheguei finalmente, sobre o tapete estava o recipiente esférico que não continha mais alpinos. Não continha alpinos, mas não estava vazio.

"Oi ! Você está participando de um caça-tesouros. Libere seu instinto Sparow e ache as jóias que estão escondidas na casa. Pista n° 1: "moça bonita, seu corpo cheira ao botão de laranjeira..." O local onde você se arruma e se observa por inteiro. Procure!". Eu não tinha acabado de ler quando ela abriu a porta com o maior sorriso do mundo, parecia o rádio tocando Ivan Lins me dizendo 'quero sua alegria escandalosa'. Linda, linda. O elevador demorou, eu fiquei te vendo chegar. Um abraço e eu fui conferir se a segunda pista estava na porta de espelho do guarda-roupas, ela veio atrás de mim. Lá estava não só a pista mas também uma das jóias. Eu não tinha reparado que o primeiro bilhete dizia 'jóias' no plural.

Uma embalagem de alpino indicava a autenticidade da pista. Abre antes, depois você lê. Uma caixa, forrada bem apertadinha. Eu que forrei, ontem de tarde. Abri tentando não rasgar mas foi inevitável quando vi a caixa de papel reciclado; será que é o que eu estava pensando que fosse? Um perfume. Não podia ser mais compatível com a primeira pista: um perfume de flor de laranjeira. Minha bochechas contraiam insistentemente e eu vi os olhinhos dela brilharem. Contei uma parte do livro que eu li: "Lucíola quando foi na perfumaria, o primeiro que mostraram a ela foi o de flor de laranjeira, ela riu e disse: muito puro pra mim". Ela, que também tinha lido, sorriu. Então eu li a segunda pista. "Pista n°2: "Faz um tempo eu quis fazer uma canção pra você viver mais..." Esse vem diretamente do Leitão! Corra, Takai pode estar sufocada entre biquinis, vestidos ou coisas de ballet."

Fui direto na última alternativa, podia ser um truque para que eu primeiro procurasse onde não estava. Sapatos e fantasia, eu mexia em tudo, ela me guiava com o velho tá-quente-tá-frio. Estava numa gaveta, o Cd forrado apertadinho e outra pista com embalagem de alpino. Simplesmente Fernanda Takai cantando as músicas de Nara Leão. Sem palavras, Daniel tem realmente muito bom gosto, muito bom gosto. Se por acaso eu cheguei a me impressionar foi porque mal sabia o que estava a me esperar. "Pista n°3: "Poxa, o In Cité é muito massa!" - minha fala de depois do almoço enquanto assistia ao acústico - É isso mesmo! Lenine veio da França pra te fazer uma visitinha, e veio a pedidos do Leitão! Antenção, parece que ele comeu algum camarão - eu interrompi dizendo: na cozinha! e depois continuei - estragado e está trancafiado em um dos banheiros!" Ri demais. Para quem não sabe foi uma analogia ao sufoco recente em Feira de Santana, e ainda antes de prova.

Estava lá no cantinho, o Dvd forrado apertadinho e a última pista com outra embalagem de alpino. Minha bochechas duras e meus dentes já estavam secos de tanto que eu sorria. Ai-eu-não-acredito! Quem já teve a oportunidade de me ouvir falar de Lenine sabe que preciso me controlar e parar com 'ele é muito gênio, ele é muito...'. Se for começar, vou gastar mais que um parágrafo, então vamos à quarta pista. "Pista n° 4: "Depende, . Dexter, por exemplo, é um assassino que mata assassinos" - incrivelmente eu tinha perguntado a ela sua opinião sobre pessoas que fazem justiça com as próprias mãos. Perguntas típicas feitas pra irmãos mais velhos que fazem direito, bem como: qual a diferença entre ética e moral? - Para um pouco de distração, Dexter veio mostrar o ponto de vista dele sobre serial killer. Ele está atrás de uma moita de seres como ele." Seres como ele? Hum. Fui no rack pra ver detrás dos Dvds e, antes de conferir, a última embalagem de alpino estava debaixo do controle. Rir ou chorar? Vésperas de aniversário não costumam ser excitantes assim, e eu adorei. Adorei muito.

O texto ficando grande e longe de acabar. Almoço e a idéia de estréia de Dexter foi unânime. Feche a porta da varanda pra ficar escurinho que agora eu que tenho uma surpresa. Do congelador, o sorvete mais caro que eu vi, Haangen-Dazs. Entrou na minha lista de 'o que se deve fazer uma vez por ano' já que, se frequentemente, o bolso chora. Tchanram! Deve ser, aliás, tem que ser muito bom. Dito e feito. Ou melhor, comido. A brincadeira 'feche os olhos e abra a boca' se inverte, você põe o sorvete antes e depois fecha de tão bom. Cappuccino Caramel e Truffle. Eu pensei em sorvete de café quando estava na Ribeira, e agora ele estava em minhas mãos e boca. Bom, ótimo, ou um dos adjetivos que eu mais gosto: inefável.

Tudo bem, eu já sei que estudar em casa com pai e irmã de férias não é muito sucesso. Bem como ontem à noite, quando meus dois priminhos não me deixavam terminar uma redação e, de quebra, desafinaram meu violão, enquanto meu pai via seu Flamengo perder - sim, eu sou vascaína. Por isso peguei provas e fui para a biblioteca estudar. Olhar uma questão e ver que a sua resposta não está batendo é chato. Eu podia pedir ajudar a alguém com cara de sabido. Seria burrice. O estopim da questão tem que ser achado e não mostrado. Eu vou resolver e não passo de questão até conseguir. Em prova não se faz isso por causa do tempo, mas agora é a hora, eu 'tenho miolo' - como diria Fabiano -, o que não tenho é prática. Aqui vos digo, matei-as. Não todas porque a biblioteca fechou mais cedo, mas matei as que eu enfrentei. Saí de lá outra pessoa. Estou pronta pra fazer 18 anos? Saber a resposta tiraria o ar da graça dessa minha transição.

De noitinha estávamos no segundo episódio. A arte de terminar na hora do "tcham-tcham-tcham" foi o que os produtores de seriados mais aprenderam. As surpresas não têm fim. Tanto em seriados quanto na minha sala de estar. Minha tia aparece, 'Ninguém vai falar comigo não?'. Eu fiquei um tempo parada, parecia alucinação. Como ela estava em Irecê ainda há pouco e aparece aqui sem que eu ouça algum barulho? Muitos abraços e meu tio sai da cozinha. Gente, vocês me enganaram direitinho. Começa a mostragem: muitas comidas de interior. Goiaba do pé, bolo 'avoador', pamonha da e o pão da Coobrasil. O melhor pão do mundo, o pão que eu comia quando minha mãe chegava do trabalho antes de anoitecer. Pão. Se deixar eu como mais de dez, e não é exagero. Chega disso! Não vai sobrar nada pra amanhã? Se hoje está assim, imagine. Da minha madrinha e minha vó, que não puderam viajar, outra surpresa. Minha vó escolheu brincos, 'será que ela vai gostar?' não importa, , não importa. Minha madrinha, Poliana moça. 'A mulher queria que eu levasse o Cógido da Vinci dizendo que este já está ultrapassado', viva a teimosia de tia Linete. Mais comidas, mais risadas, outro episódio e eu levantei pra escrever.

Estranho eu sei que pode parecer, mas eu me envio cartas. Sempre enviei. Escrevo hoje para ler amanhã. E amanhã eu escrevo pra depois de amanhã, já com analogia a ontem. Do tipo: em 2001, eu li o meu diário e escrevi a última página, rindo de 1998, 'olha que eu achava que sabia de muita coisa, mas agora sim eu sou mocinha'. Ano passado eu li e ri ainda mais, é engraçado. Não tem como dizer o quanto falta pra aprender. Viver pra aprender e ir aprendendo a viver, sempre. Ontem, hoje e especialmente amanhã.

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Chorei de saudade.
Chorei de saudade.

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