LEMBRANÇAS E HORIZONTES

Um leve rubor subiu-lhe as faces. Um sorriso quis despontar na boca. Abaixou o olhar, engoliu em seco; virou-se e correu. Correu o mais rápido que pôde. Seu vestido estampado – presente da avó – esvoaçava ao vento. Sentia-se um pássaro cortando o céu. Se não fosse menina, seria um pássaro – sempre pensava nisso.

Parou embaixo da laranjeira que ficava numa elevação do terreno. Adorava aquele lugar: o cheiro cítrico das frutas, o tronco aconchegante em que se recostava e as pequenas flores brancas que, às vezes, caíam... Sonhava em casar-se com uma grinalda de flores de laranjeiras. Sonhava com tanta coisa.

Sentou-se com as pernas cruzadas, arrumou os fios de cabelo que teimavam em cobrir-lhe a face úmida de suor. Fitou o horizonte sem medo, dúvidas ou incertezas daquela imensidão.

Seus olhos brilhavam. O sorriso contido explodira agora. De seus finos lábios vermelhos escorriam a mais pura alegria.

Ela transbordava alegria.

Estava mais feliz do que quando ganhara a primeira boneca, do que quando andara a primeira vez no velho caminhão do seu vizinho ou quando o pai lhe dissera que iriam morar na cidade.

Tudo isso por conta daquelas palavrinhas sussurradas ao seu ouvido (“Eu gosto de você”) e daquele beijo singelo em sua bochecha, dado por aquele garoto magricela, que vestia uma camisa surrada de algodão. Se soubesse que nunca mais o veria, ela teria pensando duas vezes antes de sair correndo.

Ela sorvia cada gota daquele êxtase infantil de gosto de groselha. Parecia-lhe que viveria para sempre aquele maravilhoso turbilhão de sensações. E ficara horas ali postada. O olhar preso ao horizonte; a mente presa ao garoto magricela; a mão presa ao rosto febril, onde recebera o beijo. O sol se pôs, lançando sobre ela os seus últimos raios dourados.

Chegou a noite.

E tudo aquilo se desfez... Como a neblina da madrugada quando chega a impávida manhã. Aqueles olhos escuros abriram-se. Divisaram na semi-penumbra do quarto os números vermelhos do rádio-relógio à sua cabeceira. 6:32. As manhãs nada tinham de impávidas. As brumas não mais se dissipavam.

Sentou-se na cama.

Engraçado. Há muito deixara de sonhar e, de repente, vinha este sonho de lembranças perdidas. Uma certa nostalgia invadiu-a. Fora um dia aquela menina de sorriso fácil e de vestido florido. De desejos e de fantasias.

Virou o rosto para o outro lado da cama: um homem gordo ressonava profundamente. O seu coração palpitou. Um súbito medo. Aquele ali não era, não fora e jamais seria o garoto de sua infância. Era seu marido, apenas.

Levantou e foi ao banheiro. E no espelho, fitou-se. Os cabelos bagunçados e quebradiços, naquele castanho sem brilho e de onde surgiam os primeiros fios brancos. A boca murcha e sem cor. O rosto cheio de rugas. A pele lívida. Os olhos opacos. Uma mulher sem vida, sem batalhas vencidas, sem um amor verdadeiro. Medíocre! Sentiu nojo de si mesma. Vergonha. Desprezo. Pena. Não teve forças, nem coragem para continuar encarando-se.

Foi à cozinha. Da primeira gaveta do armário pegou uma faca; da fruteira, uma laranja. Descascando-a, dirigiu-se à sala, recostou-se na janela. Olhando o céu, que parecia rir dela, e o contorno enegrecido dos prédios antigos, que pareciam entendê-la, levou uma das bandas da laranja à boca. Estava seca. Sem uma gota de sumo. Sentiu uma compaixão por aquele fruto...

E deu uma última olhada no horizonte, sem medo, dúvidas ou incertezas daquela imensidão. Já não tinha o que temer ou o que esperar. Já não havia mais horizontes.






André Henrrique Oliveira.

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