O problema é lá dentro.

Passou de meio-dia e ela não viu. Ia atrasar-se para o trabalho, e não se preocupou. Não tinha tocado no almoço mas seu estômago não reclamou. Horas sentada na mesa-para-uma-pessoa de sua cozinha e nada mais importava. Ali só havia ela, o suco e o que tinha no suco e não era açúcar. O chefe podia reclamar, a fome podia apertar, mas antes ela ia resolver todos os problemas da vida sem uma gota de suor.

Não havia hora exata. Quantos minutos se passaram? "Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve" diria De Assis. Ela segurou o copo tremendo e apertando-o firmemente. Levantou-o devagar mesmo tentando ser rápida, quando mais queria fazê-lo menos teria que pensar, sua cabeça dava pontadas, tinha de ser de vez. Foi de uma vez. Podia ouví-lo descer urrando como uma criança num tobogã e chorou sentada no chão.

Um murmúrio. Dois. três. Simultâneo ao aumento da quantidade era o aumento do volume e se fez um estardalhaço. Ela levantou de susto e abriu as portas do armário debaixo da pia. O cano tremia, se batia nas vasilhas de plástico e panelas, parecia ter uma convulsão epiléptica das mais horrorosas. Ela gritava imaginando o que aconteceria se o tivesse tomado.

Na janela gritou para a vizinha chamar um encanador já que seu telefone cortado não contribuia. Tendo sorte uma vez na vida, o irmão da vizinha, que estava de visita, já tinha trabalhado com um tio encanador e foi ver se podia ajudar. Quando abriu a porta não sabia se gritava mais ou se emudecia de vez. Chegou a se arrepender de não ter o suco em seu esôfago para que ele consertasse a ela em vez de o cano. Bobagem. Apontou e serviu de guia para a cozinha.

-Quando isso aconteceu?
-Desde que eu... Ah! O cano! É... agora a pouco eu, eu estava almoçando e... e começou! Disse empurrando maior parte da comida para o lixo perto do fogão.
-O problema deve ser na instalação...
-Não.
-Não?
-O problema é aqui... Lá! Lá dentro. O problema é lá dentro.

Mesmo que ele consertasse não estaria pronto. Havia tubulações mais entupidas que o cano da cozinha. Ela admirava o cuidado com que ele olhava e mexia os canos e sentiu ciúmes. Ciúmes do cano. Quando ele terminou, enxugou o suor repetindo duas vezes para que ela respondesse.

-O caso do cano está resolvido.
-Olhe... eu tenho pouco dinheiro, mas eu deixo da vizinha...
-Não precisa. Eu sei que o problema em si não está resolvido, eu vou deixar o telefone da minha casa pra quando precisar de novo.



Comtenporaneidade e crises femininas, conto II

Comentários

Martins disse…
NOssa, muito bom. E olha q o "q" mesmo nem precisou ser dito... e aí q mata...pensei em 500 coisas ! Muito bom mesmo.

E boa coisa essa de Temática! "contemporaneidade e..."

abraÇOn

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