Prazo de validade.

Já estava deitada quando ouvia o barulho da escova de dentes. Há muito tempo ela o esperava acordada, mas ultimamente, na crise por qual passavam, cabia que tentasse dormir antes. Apesar de nunca conseguir, ela fingia e só dormia depois de acompanhar com os ouvidos todo o ritual pré-travesseiro do marido.

A crise era mais fácil de entender do que explicar. Ela ganhou 30 quilos com o único filho e nunca mais os perdeu. Pra compensar, ele voltou a fumar três maços de cigarros por dia, cujo o cheiro e fumaça faziam-na lembrar-se do padastro.

Essa noite não. Ele quebrou o mau hábito do silêncio de dentro do banheiro mesmo. 'Lena?' Disse ainda passando o fio dental. Ela não sabia se continuava a fingir ou se respondia. O coração querendo bater recordes de batimentos por segundo. O que será? Podia pensar na possibilidade de reconciliação, mas a mente complexa de mulher só permitiu que pensasse em desgraças. Ele perdeu o emprego ou ganhou uma doença grave. Se não respondesse não dormiria nessa noite nem nas próximas.

"Oi". Apertou os olhos esperando o quer que fosse. "Lembra do dia que sua escova caiu na privada do hotel? Lá em Maceió?". Ela repondeu que sim com a voz trêmula de quem não quer que tudo seja sonho. "É. Foi engraçado". As bochechas tiveram a ousadia de se contrair e deixar de fora um pouco dos dentes, costume que tinha perdido há tempos. Então ele apagou a luz e veio devagar até o seu lado da cama. Ela virou-se e recusou abrir os olhos pra não acordar. Já tinha até esquecido o gosto que tinha aquele beijo, foi a noite mais mais esplendorosa, estupenda, inebriante, inefável da sua vida.

Quando viu a janela denunciar que já era dia, sentiu um aperto de medo e uma lágrima caiu. 'Se tudo foi fruto de sonho, a partir de hoje procuro alguma ajuda.' Pouco se mexeu e o viu em pé dando o nó na gravata. Perguntar ou não era a questão. Se não fosse real, a dúvida o faria pensar que ela delira, ia acusar loucura. Antes acabar com isso de vez do que adiar o dia que descobrirão a verdade.

'É... hun. Ontem... é...'. Era difícil, mas ela não precisou terminar, ele mesmo interrompeu: 'Sim, aconteceu.' Mudez, embevecimento e êxtase. Um turbilhão de pensamentos invadiam a cabeça daquela mulher, um sentimento agradável começou a semear de dentro pra fora. Tentou dizer qualquer coisa mas só gaguejou "é... ah. então... é...". E novamente ele interrompeu deduzindo que ela fosse investigar o porquê do evento nada ordinário.

"Ontem, eu jantei aqui. O suco que estava na geladeira, tinha passado do prazo de validade. Nunca se sabe". Depois daquela noite, a vida daquela mulher era em supermercados suburbanos, gastando horas a procurar a validade do seu casamento perecível.


Contemporaneidade e crises femininas, conto I

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